A
construção da Antropologia como ciência passou pelo seguinte problema do
encontro com outros povos e outras culturas gerado a partir das navegações
americanas, a tomada do antigo “império” asteca por Cortez passou, segundo
Tzvetan Todorov, em “A conquista da América”, pela compreensão do outro,
no caso dos astecas, para a sua própria dominação.
O
estranhamento trata-se de uma temática que ocorre no estudo de outras culturas,
onde o pesquisador observa práticas do “outro” e recebe um choque que o faz
tomar por ideia uma comparação de sua própria cultura com a cultura em questão,
tal como Heródoto fazia ao comparar os citas com os gregos, na Antiguidade.
Michel
de Montaigne critica que o estranhamento do europeu em relação aos povos
nativos tenha tomado feições funestas, e ele próprio valorizava a figura do
nativo, o qual segundo ele tinha uma honra e um código, além de elementos bons
em sua constituição, embora tenha se encontrado com apenas dois índios
tupinambá e os seus ensaios foram levados a cabo a partir do relato de
viajantes.[1]
Entretanto
a defesa dos nativos do antigo Tawantisyu feita por Bartolomé de las Casas
mostra a necessidade de se observar com maior atenção à questão do outro, a
isso se observa que para se entender o outro nasce uma nova ciência chamada
Antropologia, como destaca Roberto da
Matta em seu “Relativizando: uma Introdução à Antropologia Social”[2].
Observando
o filme “Os Mestres Loucos” de Jean Rouch, a questão do choque cultural bem
como do estranhamento torna-se evidente, na temática sobre os rituais de uma
tribo no interior da África subsaariana. Influenciado pelo próprio cinema de
Vertog, Rouch mostra uma comunidade que a despeito de viver na vida urbana,
mantém um ritual incomum de possessão no meio da selva.
O
estranhamento é clarividente quando se observa o modo como alguns membros dessa
tribo agem no ritual, “interpretando”, se é que podemos usar esse termo,
figuras da própria administração
colonial que estariam mortas à época, o “General”, o “Governador”, a “Madame”.
E esse ritual demonstra também o quanto nossa própria cultura pode ser
estranha, ou até ridícula frente a outros olhos, como por exemplo, na cena onde
um dos “Soldados”, marcha a passo de ganso no meio das gramíneas representando
uma Parada Militar.
Isso
vai de encontro aos comentários que Tuiávii, chefe de uma tribo do Pacífico
Sul, trata a figura do próprio Papalagui,
os homens que vivem em baús de pedra[3] envolvem-se
num fardo sobre “ uma delgada pele branca, feita de fibras de certa planta, a
chamada pele superior”[4]
que vangloria mais “o metal redondo e o papel pesado” do que o Grande Espírito[5].
É
na análise do filme que se percebe que apesar de alguns acharem o ritual
ridículo, o próprio ritual colonial de formalidades e paradas militares para
demonstrar a força também poderia ser visto dessa forma.
É
deveras conveniente frisar o modo como o documentário foi executado, a pedido
de um sacerdote dessa seita existente no Niger, que tenta mostrar o dilema dos
jovens em continuar a preservar suas tradições frente à própria inserção do
dito “desenvolvimento” ocidental em sua própria realidade, algo que ocorre com
várias culturas no mundo, não necessariamente isoladas, como o caso da própria
cultura judaica frente ao dilema da “globalização”.
O
choque cultural é gritante, principalmente na conjectura que alguns
observadores ficaram terminantemente chocados, beirando aos trejeitos de
repulsa na cena em que o cachorro foi sacrificado e serviu de alimento para os
membros da tribo em questão.
Chocado
também ficou Montezuma ao descobrir que os cristãos comiam o seu próprio Deus e
bebiam o seu sangue (hóstia e vinho sacro) e o mandaram limpar o templo de
sacrifícios por acharem repulsivo o sacrifício humano.[6]
Os
mongóis também acharam estranho o modo como
os ocidentais expunham relíquias de pessoas mortas nas igrejas, bem como restos
mortais, que para eles era quase um insulto a exposição de membros humanos de
tal forma, não à toa que eles acharam o ritual pervertido e repugnante e
incendiaram as igrejas de Pest (cidadezinha húngara a formar Budapeste
posteriormente) para se purificarem da conspurcação.[7]
O
pensamento antropológico não é alheio ao próprio estranhamento, segundo Roberto
da Matta, e também não pode passar a análises simplistas sobre o tema, como
aponta François Laplatine em “A pré-história da Antropologia: a descoberta
das diferenças pelos viajantes dos século XVI e a dupla resposta ideológica
dada daquela época até os nossos dias”, não se pode cair em falso em
conceituações fechadas como Bom ou Mau, deve-se ir para além disso, Para
Além do Bem e do Mal, como Friedrich Nietzsche escreve no seu livro
homônimo e deve-se problematizar a questão de tal forma que seja possível fazer
uma análise acadêmica do tema.
O
único perigo que deve ser enfrentado é o etnocentrismo, erro crasso mais comum
em alguns trabalhos sobre os estudos de outras sociedades, tais como Heródoto
cometeu ao pontuar que os egípcios eram valorosos, mas não mais que os gregos
que conheciam a democracia.
O
problema é que o etnocentrismo não é só um problema das sociedades ditas
“ocidentais”, afinal de contas Tuiávii também dizia que sua tribo era mais
valorosa por não viver segundo o mandato “do metal redondo e o papel pesado”.
Olhando
com maior atenção, o ritual de “possessão” dessa tribo do Níger, observa-se que
há uma semelhança com o ritual das bacantes na dita Antiguidade Helênica, mas
isso não quer dizer que eles estariam num grau de evolução menor do que o
nosso, tais ideias de evolucionismo são perigosas quando aplicadas à ciências
sociais.
Dessa
forma observa-se que apesar de Roberto da Matta falar que o dilema do cientista
social “as condições de percepção de classificação e interpretação são
complexos, mas os resultados em geral não têm consequência na mesma proporção
da “ciência natural”[8],
não se pode menosprezar o perigo que alguns lugares vertiginosos podem ser
conseguidos a partir de uma observação descuidada das ciências sociais.
Pondo
fim à discussão a questão do estranhamento é necessária à análise antropológica,
mas não pode evoluir a outras vias próximas ao etnocentrismo e ao
evolucionismo, de tal forma que o próprio conhecimento antropológico pode ser
até mais complicado do que o conhecimento produzido pelas ciências naturais.
[1]
MONTAIGNE, Michel de. Dos Canibais. Capítulo XXXI do Livro 1 dos Ensaios. Trad.
J. Brito Broca e Wilson Lousada. In: http://www.consciencia.org/dos_canibais_montaigne.shtml
[2] DA
MATTA, Roberto. Relativizando: uma Introdução à Antropologia Social. Rio de
Janeiro: Rocco, 1993.
[3]
SCHEURMANN, Erich. O Papalagui: discursos do chefe Tuiavii, chefe da tribo de
Tiavéa dos mares do sul. Trad. Luiza Neto Jorge. Lisboa: Edições Antígona,
1998. Pág. 23
[4] Idem, Pág.
16.
[5] Ibidem,
pág. 31.
[6] Não que
eu esteja sendo favorável à antropofagia.
[7] WEATHERFORD, Jack. Gengis
Khan e a formação do Mundo Moderno. Trad. Jorge Ritter— Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil. 2011. Pág. 253
[8] MATTA, Roberto da. Op. cit. pág. 20.
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