sábado, 8 de março de 2014

Um ensaio sobre a antropologia


            A construção da Antropologia como ciência passou pelo seguinte problema do encontro com outros povos e outras culturas gerado a partir das navegações americanas, a tomada do antigo “império” asteca por Cortez passou, segundo Tzvetan Todorov, em “A conquista da América”, pela compreensão do outro, no caso dos astecas, para a sua própria dominação.
            O estranhamento trata-se de uma temática que ocorre no estudo de outras culturas, onde o pesquisador observa práticas do “outro” e recebe um choque que o faz tomar por ideia uma comparação de sua própria cultura com a cultura em questão, tal como Heródoto fazia ao comparar os citas com os gregos, na Antiguidade.
            Michel de Montaigne critica que o estranhamento do europeu em relação aos povos nativos tenha tomado feições funestas, e ele próprio valorizava a figura do nativo, o qual segundo ele tinha uma honra e um código, além de elementos bons em sua constituição, embora tenha se encontrado com apenas dois índios tupinambá e os seus ensaios foram levados a cabo a partir do relato de viajantes.[1]
            Entretanto a defesa dos nativos do antigo Tawantisyu feita por Bartolomé de las Casas mostra a necessidade de se observar com maior atenção à questão do outro, a isso se observa que para se entender o outro nasce uma nova ciência chamada Antropologia, como destaca  Roberto da Matta em seu “Relativizando: uma Introdução à Antropologia Social”[2].
            Observando o filme “Os Mestres Loucos” de Jean Rouch, a questão do choque cultural bem como do estranhamento torna-se evidente, na temática sobre os rituais de uma tribo no interior da África subsaariana. Influenciado pelo próprio cinema de Vertog, Rouch mostra uma comunidade que a despeito de viver na vida urbana, mantém um ritual incomum de possessão no meio da selva.
            O estranhamento é clarividente quando se observa o modo como alguns membros dessa tribo agem no ritual, “interpretando”, se é que podemos usar esse termo, figuras  da própria administração colonial que estariam mortas à época, o “General”, o “Governador”, a “Madame”. E esse ritual demonstra também o quanto nossa própria cultura pode ser estranha, ou até ridícula frente a outros olhos, como por exemplo, na cena onde um dos “Soldados”, marcha a passo de ganso no meio das gramíneas representando uma Parada Militar.
            Isso vai de encontro aos comentários que Tuiávii, chefe de uma tribo do Pacífico Sul, trata a figura do próprio Papalagui,  os homens que vivem em baús de pedra[3] envolvem-se num fardo sobre “ uma delgada pele branca, feita de fibras de certa planta, a chamada pele superior”[4] que vangloria mais “o metal redondo e o papel pesado” do que o Grande Espírito[5].
            É na análise do filme que se percebe que apesar de alguns acharem o ritual ridículo, o próprio ritual colonial de formalidades e paradas militares para demonstrar a força também poderia ser visto dessa forma.
            É deveras conveniente frisar o modo como o documentário foi executado, a pedido de um sacerdote dessa seita existente no Niger, que tenta mostrar o dilema dos jovens em continuar a preservar suas tradições frente à própria inserção do dito “desenvolvimento” ocidental em sua própria realidade, algo que ocorre com várias culturas no mundo, não necessariamente isoladas, como o caso da própria cultura judaica frente ao dilema da “globalização”.
            O choque cultural é gritante, principalmente na conjectura que alguns observadores ficaram terminantemente chocados, beirando aos trejeitos de repulsa na cena em que o cachorro foi sacrificado e serviu de alimento para os membros da tribo em questão.
            Chocado também ficou Montezuma ao descobrir que os cristãos comiam o seu próprio Deus e bebiam o seu sangue (hóstia e vinho sacro) e o mandaram limpar o templo de sacrifícios por acharem repulsivo o sacrifício humano.[6]
            Os mongóis também acharam estranho o modo  como os ocidentais expunham relíquias de pessoas mortas nas igrejas, bem como restos mortais, que para eles era quase um insulto a exposição de membros humanos de tal forma, não à toa que eles acharam o ritual pervertido e repugnante e incendiaram as igrejas de Pest (cidadezinha húngara a formar Budapeste posteriormente) para se purificarem da conspurcação.[7]
            O pensamento antropológico não é alheio ao próprio estranhamento, segundo Roberto da Matta, e também não pode passar a análises simplistas sobre o tema, como aponta François Laplatine em “A pré-história da Antropologia: a descoberta das diferenças pelos viajantes dos século XVI e a dupla resposta ideológica dada daquela época até os nossos dias”, não se pode cair em falso em conceituações fechadas como Bom ou Mau, deve-se ir para além disso, Para Além do Bem e do Mal, como Friedrich Nietzsche escreve no seu livro homônimo e deve-se problematizar a questão de tal forma que seja possível fazer uma análise acadêmica do tema.
            O único perigo que deve ser enfrentado é o etnocentrismo, erro crasso mais comum em alguns trabalhos sobre os estudos de outras sociedades, tais como Heródoto cometeu ao pontuar que os egípcios eram valorosos, mas não mais que os gregos que conheciam a democracia.
            O problema é que o etnocentrismo não é só um problema das sociedades ditas “ocidentais”, afinal de contas Tuiávii também dizia que sua tribo era mais valorosa por não viver segundo o mandato “do metal redondo e o papel pesado”.
            Olhando com maior atenção, o ritual de “possessão” dessa tribo do Níger, observa-se que há uma semelhança com o ritual das bacantes na dita Antiguidade Helênica, mas isso não quer dizer que eles estariam num grau de evolução menor do que o nosso, tais ideias de evolucionismo são perigosas quando aplicadas à ciências sociais.
            Dessa forma observa-se que apesar de Roberto da Matta falar que o dilema do cientista social “as condições de percepção de classificação e interpretação são complexos, mas os resultados em geral não têm consequência na mesma proporção da “ciência natural”[8], não se pode menosprezar o perigo que alguns lugares vertiginosos podem ser conseguidos a partir de uma observação descuidada das ciências sociais.
            Pondo fim à discussão a questão do estranhamento é necessária à análise antropológica, mas não pode evoluir a outras vias próximas ao etnocentrismo e ao evolucionismo, de tal forma que o próprio conhecimento antropológico pode ser até mais complicado do que o conhecimento produzido pelas ciências naturais.



[1] MONTAIGNE, Michel de. Dos Canibais. Capítulo XXXI do Livro 1 dos Ensaios. Trad. J. Brito Broca e Wilson Lousada. In: http://www.consciencia.org/dos_canibais_montaigne.shtml
[2] DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma Introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
[3] SCHEURMANN, Erich. O Papalagui: discursos do chefe Tuiavii, chefe da tribo de Tiavéa dos mares do sul. Trad. Luiza Neto Jorge. Lisboa: Edições Antígona, 1998. Pág. 23
[4] Idem, Pág. 16.
[5] Ibidem, pág. 31.
[6] Não que eu esteja sendo favorável à antropofagia.
[7] WEATHERFORD, Jack. Gengis Khan e a formação do Mundo Moderno.  Trad. Jorge Ritter— Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2011. Pág. 253
[8] MATTA, Roberto da. Op. cit. pág. 20.

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