domingo, 24 de novembro de 2013

O dia que comecei a assistir Star Trek







"O Espaço, a Fronteira Final... Essas são as viagens da nave estelar Enterprise em sua missão de cinco anos para a exploração de novos mundos, para pesquisar novas formas de vida e novas civilizações. Indo, audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve" Abertura de Jornada nas Estrelas.

"A lógica é apenas o princípio da sabedoria, e não o seu fim" Spock sobre o papel da lógica


       Isso tem muito tempo, muito tempo mesmo. Nem lembro que ano foi, só lembro o modo como tudo começou... Era uma quinta-feira, lembro bem que era uma quinta-feira, eu tinha aula cedo no outro dia, mas não queria dormir. Tanto que não queria dormir que minha mãe cismava que não devia assistir televisão tarde, então, eu burlei o sistema, liguei o rádio então. Afinal, eu não estava assistindo televisão.




       Antigamente (não tanto hoje) o rádio operava em frequências muito próximas da televisão em alguns casos e causava interferências (com a TV digital tudo isso se perdeu) e eu peguei a transmissão de um canal de televisão sem querer... Era a voz do Senhor Spock no rádio, uma voz grave mas ao mesmo cativante em uma especulação sobre um fato qualquer. Foi aí que parei para ouvir pela primeira vez de Jornada nas Estrelas, Spock e Kirk estavam numa versão bizarra de uma Alemanha Nazista (quer coisa mais bizarra ainda) no século XXIII para tentar impedir um  genocídio. Comecei a ouvir o rádio até que as escondidas liguei a televisão, coloquei o cobertor sobre a televisão e vi o contorno cheio de cores que é comum dos seriados dos anos 60.


      A humanidade conviveu por tanto tempo em preto e branco que quando a TV a cores surgiu todo mundo quis exagerar. Mas eu lembro que eu estava compreendendo tudo, embora Spock falasse rápido demais. Mas essa era a mensagem, Jornada nas Estrelas sempre tratou temas complexos com palavras simples. Daí então passei a gostar de Jornada nas Estrelas.


     Todas quintas feiras eu assistia aquela reprise escondido da minha mãe que sempre achava uma porcaria pensar em viver no Espaço, imaginar um futuro melhor. De repente vi que todas as semanas eu esperava dar 20 horas pontualmente para ligar a televisão. Assistindo as aventuras de Kirk, Spock, McCoy, Scotty, Sulu, Uhura, Chekov e outros eu começava a imaginar que o futuro seria melhor realmente, com homens galopando pelo cosmos com naves mais rápidas que a luz, utilizando-se às vezes da dobra temporal para voltar ao passado. Guerras, diplomacia, ciência, medos, paixões, filosofia, antropologia. Jornada nas Estrelas era algo muito bem feito para época, embora seus cenários sempre fossem toscos e muitas vezes reutilizados, algumas histórias fossem incompletas, as brigas do Capitão Kirk fossem hilárias, eu gostava de ver o jeito como a Enterprise se organizava:



     Eu gostava do tom de comando de Kirk em dar ordens, mas ouvir também muitas vezes conselhos e retroceder, ser hábil ao negociar com outros comandantes (acho que peguei um pouco disso para mim), também gostava do método analítico, indutivo e lógico de Spock (que também é usado por mim em muitas ocasiões que merecem reflexão), seu senso meio esnobe da superioridade da lógica frente aos impulsos "bárbaros" dos humanos em seguir suas emoções e instintos, Spock sempre foi um filho de dois mundos, rejeitado pelos vulcanos por ser filho de uma humana e rejeitava ser humano por sempre se ver como vulcano. Sempre me senti como Spock, filho de dois mundos, só que no meu caso era a cristandade e o judaísmo, e sempre me vi rejeitado por aqueles que me identifico. São duas culturas diferentes, a humana e a vulcana, assim como a cultura judaica e a cristã.


                                               Mais uma das brigas do Capitão Kirk

     Scotty sempre tive uma certa simpatia por achar que ele era um falastrão mesmo, mas de bom coração. Viciado em seu trabalho (também sou viciado no meu), às vezes fica tão alienado em pensar nos seus motores de Dobra que não pensa outra coisa senão na segurança da nave. Kirk e Scotty dividiam um amor imaterial por algo que não poderia lhes corresponder, um amor platônico e triangular.  Os dois amavam a Enterprise, Scotty amava o modo como ela fora construída e como funcionava e Kirk amava o ambiente de convívio que a nave proporcionava, o modo como ele tinha seu comando atrelado a esse braço poderoso que era a Enterprise.

Scotty num momento etílico
      Kirk é a releitura do velho capitão de nau de madeira tão bem descrito na literatura de viagem do século XIX, Gene Roddenberry certa vez confessou que a figura de Kirk foi baseada numa série de livros que tinha lido quando criança que tratavam das viagens de Horatio Hornblower, criação do escritor britânico C.S. Forester.

     Kirk era um galã que tinha uma mulher à sua espera a cada planeta que chegava, e isso o seriado sempre enfatizou o modo bon vivant de Kirk, mas ainda assim responsável, tanto que certa vez Kirk no cumprimento do dever acabou perdendo o amor de sua vida no episódio "The City  on the Edge Forever" (Cidade à beira da Eternidade), Edith Keeller.  Kirk sempre teve um teor trágico na sua vida, foi o capitão mais jovem da Frota Estelar ao tomar o comando da Enterprise com 26 anos, mas teve que vivenciar um genocídio na colônia Tarsus IV promovido por Kodos, o Carrasco, durante suas viagens perdeu o seu irmão que foram vitimado junto com sua família por um praga que abateu um planeta no sistema de Rigel, sobrando-lhe apenas um sobrinho como parente. Não teve tempo para conviver com o filho e quando chegou a saber de sua existência, teve que enfrentar o assassinato do filho pelos Klingons.
     
Kirk e o amor de sua vida, Edith Keeler (que morreu de forma trágica)


     Não há vida mais triste que a de Kirk, de modo que o capitão sempre procurou o apoio de seus amigos mais próximos: Spock e McCoy. Formando um trio que dava amálgama ao comando da Enterprise. Enquanto Spock se prendia aos seus paradigmas, à sua irracional procura pela racionalidade extrema, McCoy não teimava em ser profundamente humano, emocional, às vezes rabujento demais, dava conselhos importantes a Kirk e frequentemente discutia com Spock sobre questões filosóficas, McCoy era a definição de um médico de interior que cuidava de seus pacientes como se fossem seus vizinhos, bem diferente da concepção dos médicos que temos hoje.

\Kirk, McCoy e Spock o trio imbatível da série


     Chekov é a juventude que se abre na Enterprise, impulsivo, emotivo e brigão, Chekov sorri e brinca com Sulu na Ponte de Comando, corteja as moças de vez em quando, mas não esconde seu nacionalismo russo quase explicito. Acredita nas virtudes do povo russo e está ali representando a Mãe Rússia com unhas e dentes na navegação e no controle de armas. Pouco se sabe sobre Chekov pela série, só que perdeu um amor quando entrou para a Academia da Frota Estelar.






Sulu e Chekov num momento de descontração

      Sulu é a paciência e a eficiência combinadas juntas. Sulu nem era meu favorito embora fosse um anexo para a agressividade de Kirk, envolvendo-se em brigas e distúrbios muitas vezes; Não tinha muita simpatia por Sulu quanto tinha por Chekov, talvez porque numa certa altura Sulu tenha sido negligenciado na série.








       Uhura é a musa da nave, uma excelente cantora, também era responsável pela parte das comunicações da nave. Uhura divertia-se aos flertes que lançava de vez em quando à população masculina da nave, mas na realidade se via profundamente sozinha na imensidão do Espaço.

       A enfermeira Chapel é a encarnação de um amor platônico que nunca dera certo, afinal de contas, Chapel tinha uma paixão impossível pelo senhor Spock, que por sua vez era casado (Time Amok explica isso) e tentava ser asceta dentro da nave. Auxiliar do Doutor McCoy , impossível não sentir pena da tristeza com que a enfermeira olhava o senhor Spock pelos corredores.


         Findo isso, é conveniente destacar o que eu aprendi com Jornada nas Estrelas:

Comandante Klinglon em um momento de profunda satisfação


         História, as viagens de volta ao tempo e as visitas a planetas que imitavam o passado terrestre figuravam como uma aula de História. Além disso, o seriado querendo ou não é bem influenciado por sua época de produção, a Guerra Fria, tanto que os klinglons são como uma metáfora para os soviéticos, e num episódio ficou explicita a referência à Crise dos Misseis ao tratar da ameaça de guerra entre a Federação e o Império Klinglon. De fato, se os klinglons são uma metáfora para os soviéticos, a Federação é uma metáfora camuflada de um norte-americanismo propagado por ideias como democracia, liberdade associadas ao crescente desenvolvimento tecnológico. A Federação é a visão de um futuro da transformação dos Estados Unidos.


         A ideia da Enterprise é uma ideia antropológica de convivência de vários povos dentro de um mecanismo de viagem para outros planetas. Nisso, convivem muito bem americanos (Kirk, McCoy), japoneses (Sulu), swalis (Uhura), irlandeses (Riley), escoceses (Scotty), russos (Chekov) e raças alienígenas (Spock). 

          O contato com outros povos também abre discussões antropológicas, como a própria demonização dos Klinglons, as raízes em comum entre vulcanos e romulanos, a diretriz de não-interferência que é um tema recorrente da série que impede dos homens da Federação exercerem seu etnocentrismo. A ideia de Star Trek além de glorificar a corrida espacial, mostrar os desenvolvimentos científicos da época, no campo da antropologia, história, física (Teoria das Cordas, Dobra Espacial, Buracos de Minhoca), biologia (Vida baseada em silício, como no caso do monstro que matava a todos num planeta mineiro; Vida com sangue de cobre, caso de Spock), filosofia e outras áreas.

        Há a propaganda de valores americanos também, como no episódio que há uma guerra civil num planeta e Kirk discursa para os habitantes com a constituição americana nas mãos e diz: "Esses valores não são só para vocês, mas também para os commies (comunistas)". Foi um episódio escrachado do espirito civilizatório da diplomacia americana.
Kirk lendo a Constituição Americana


          De fato, diplomacia é o que ronda no seriado. Klinglons, vulcanos, romulanos, rigelianos... São tantos nomes que acaba esquecendo. A conferência de Babel, o planeta Memory Alfa, todos essas reverências mostram que a diplomacia ainda o melhor caminho frente à guerra. Nisso eu vejo uma apologia ao Departamento de Estado norte-americano que estava em alta na época devido à solução da crise dos Misseis e a doutrina Kissinger na diplomacia norte-americana.


        Jornada nas Estrelas pode ser uma visão colorida de um futuro que gostariamos, mas essa visão colorida acabou influenciado o nosso presente atual: Como os celulares, que foram idealizados em Star Trek na figura dos comunicadores; Os tricorders  que hoje podem ser interpretados como os smartphones, devido ao fato de terem um acesso rápido à internet na palma da mão para o acesso de informações. Também a ideia de um computador pessoal que surgiu em Star Trek. A teleconferência e o Skype também surgiu a partir da ideia da tela central na ponte de comando.


         O teletransporte quântico ainda está em testes, o físico demorará, ainda mais que também se especula pela teoria da Relatividade ser impossível passar da velocidade da luz como Jornada nas Estrelas acredita. De fato, não há fronteiras para a capacidade criativa humana, isso Star Trek também mostra. Star Trek auxiliou-me a tornar parte do que do que sou hoje, pois trouxe-me à luz de alguns sonhos. E sonhos ainda são imortais.









"Live long and prosper"

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