Senti hoje uma imensa vontade de me matar...
De esquecer tudo que eu vi, tudo que eu presenciei. O modo como as pessoas mudaram, mudaram completamente, meus amigos ontem hoje agem como canalhas enquanto eu me sinto na berlinda entre o saber e o conhecer.
Sinto vontade de esquecer tudo que eu senti e existir, as fragmentações que tão bem me mutilaram e me deixaram desse jeito, desconfiado e melancólico. Hoje agi mal com uma criatura, um pequeno cachorrinho que corria em minha direção, que num susto pensei que fosse me morder, gritei com ele, fui extremamente grosseiro e hoje me sinto mal por ter tratado tão mal o bichinho. Sentiu medo de mim, eu confesso que depois eu senti. Realmente senti, pobre cachorrinho.
Estou com medo, realmente estou com muito medo do que eu posso estar me tornando. Incorruptível sempre serei, isso vem do meu avô para cá, mas mesmo assim tenho medo de me ver daqui alguns anos e perceber o quanto mudei. Os meus sonhos foram embora diluídos no dia-a-dia nessa repetição de casos e situações. Foram se fragmentando de tantas formas que hoje não vejo mais porquê sonhar, meus sonhos desapareceram, simplesmente.
Ainda sinto essa vontade de me matar...
Desaparecer desse mundo, esquecer de uma vez minhas dores de cabeça e algumas pessoas que sou obrigado a lidar. Sinceramente, não quero viver num mundo onde eu não possa mais sonhar, são os sonhos que me fazem acordar todos os dias para ir trabalhar, não é o dinheiro, não são os estímulos, eram os sonhos. Sonhos que se apagam ao final de uma peça, que se encerram no final desse ato onde não há aplausos nem mesmo espectadores que queiram ver.
Eu vou sair um pouco da vida. Desejo isso do fundo do coração, quero desaparecer da vida. Sumir e deixar esses pensamentos pesados para trás, mas não posso, tenho responsabilidades que ainda me atam a esse plano. As responsabilidades crescem, o medo também, e não tenho mais um porto seguro onde me segurar. O porto seguro não existe quando você sabe que tudo que você acreditava antes eram apenas ilusões. Deuses não existem, amor também não e estou cada vez mais desconfiado que sentimentos fraternais que tanto o socialismo pregava sejam apenas fantasias.
O fim aproxima-se, eu sinto-no nesse palco de representações que é a vida. Não sinto ter tantas forças quanto antes e começo a invejar aqueles que partiram; Fugiram para longe, que nunca mais voltarão, aqueles que se foram e nunca serão vistos. Os últimos grãos da balança da vida tecem sobre meus olhos escolhas que não desejo fazer;
As desilusões crescem, os cabelos começam a cair e aquilo que eu era mais grato se foi, que era poder me apaixonar de vez em quando. Sempre soube que isso me trazia mal e que seria o meu fim. E foi o meu fim, hoje, sentado nesse quarto, sozinho escrevendo essas palavras, meu âmago de ser deseja partir. Mas para onde? Não existe outro lado onde eu possa ser feliz, a morte parece sedutora aos despreparados, mas não traz maior consolo do que a vida.
Vi no espelho os anos passarem e as minhas realizações se forem. Nada mais importa senão esse desejo de acabar com tudo... Cortar meus pulsos, não, daria muito sangue, dor e pouco retorno. Enforcamento? Não tenho a corda apropriada e para piorar iria me dar uma imagem ruim no velório. Um tiro na testa? Onde arranjaria um revolver? E o estampido seria tamanho que ninguém conseguiria dormir à noite. Envenenamento? Isso não chega a ser uma morte honrosa.
Prefiro deixar a vida me conduzir vagarosamente ao meu fim, esse vagaroso fim que eu não sei onde irá chegar. O teatro começa a se esvaziar, as chances também, o ato se encerra e as cortinas começam a se fechar de novo. Não há uma orquestra que me acompanhe dessa vez e essa peça de improviso parece se encerrar de vez.
Acredite em mim quando digo, eu quero morrer, mas não quero me matar. E não espero que ninguém na minha condição leia isso sem souber que eu não desejo isso a ninguém, nem a mim mesmo. Sinto culpa de me sentir um substrato de pó de bosta que não se vê mais importante como antes.
O aspecto impessoal dessa cidade acentua isso, deixa-nos cada vez mais depressivos, ao separar as pessoas e classificá-las em torno dos bairros. a arquitetura monumental nos faz parecer pequenos e embora digam ser o âmago da beleza contemporânea, ela esconde os mais tenebrosos sussurros nas suas plantas de concreto armado.
Eu nunca me senti tão só quanto hoje, tão perdido e tão amargurado. A desolação é tamanha que julgo ser eu produto de uma mediocridade intelectualizada, um fio de incompetência organizado; Os resquícios do passado se vão, os resquícios dos tempos em que era bem feliz e sorria bem mais do que hoje, não tinha que me preocupar com essa solidão que me abate e perturba cada vez mais o seio da minha alma. A consciência traz um cenário de lutas, entre o passado e o presente. A racionalidade nos oprime, e sentimo-nos cada vez mais oprimidos quando sabemos que tudo vive sem nenhum propósito. Nada é mais frustrante do que saber que se é livre e não ter ideia de como agir.
Estou tão deprimido que não quero mais sair de casa, quero me prender nesse mundo, nesse quarto escuro, nessa fortaleza cinzenta onde se esconde o meu coração, e tento esconder todos os dias esse sentimento. Não quero que me vejam assim e nem demonstrar a mais pura fraqueza, mas falando francamente, eu queria poder ter a chance de desistir da vida. Abandonar essa caneta e essa tinta, por fim a esses graves sentimentos; Não posso, não vou. Isso me oprime e urtiga meu coração.
Talvez digam que eu só estou cansado, tomara que eu só esteja mesmo, porque esse cansaço crônico não é de nada, sinceramente. O cansaço dessa existência é produto da soma das animosidades e barbaridades do ser humano com a crescente decepção em observar a crescente materialidade funcional de nossas vidas. Isso traz um sentimento de deslocamento tão grande que atraí os mais sinceros sentimentos negativos, introjetam-se forças profundas cuja elasticidade se aproveita até que há o momento de ruptura, entre a própria função do indivíduo numa sociedade tão utilitarista quanto a nossa.
O caráter utilitário da nossa sociedade corrompe nossa essência, na medida que pedimos cada vez mais por um pouco mais de dinheiro e menos por carinho e afeto, procuramos nosso consolo e contato com a vida através do apego do dinheiro, sem sequer compreendermos que nem passamos da primeira fase do desenvolvimento infantil de Freud. O condicionamento de nossas vidas traz a crescente dicotomia entre vencedores e perdedores, onde aos vencedores se prediz a glória e as mostras máximas de carinho e afeto, enquanto aos perdedores a humilhação. Esse utilitarismo todo é a essência do nosso próprio individualismo, de maneira que traz não apenas sentimentos de rejeição, mas a pura vontade de nos retirar dessa sociedade.
Muitos não aguentam esse deslocamento, eu o suporto como um calvário todos os dias, mesmo sabendo que um dia posso terminar cedendo. Os pensamentos suicidas não são culpa do próprio suicida, mas da própria sociedade que não percebe o papel maléfico da sua crescente impessoalidade e utilitarismo, de maneira que muitos que não são amparados por uma alma caridosa, desistem da vida simplesmente porque não vêem mais lógica nesse exercício sado-masoquista que é viver.
O suicídio não é só um crime do suicida contra si próprio, mas é um crime de toda a sociedade contra um indivíduo que é esquecido propositalmente do corpo social. Às vezes não é culpa dos pais ou amigos que hoje lamentam a dor de perder alguém querido, às vezes foi culpa de você mesmo que não teve coragem de conversar com ele no metrô, ou de você moça que o tratou mal quando ele só queria falar com você naquela balada, só porque achou ser melhor que ele. A culpa é das situações rotineiras e de como as pessoas reagem a elas.
A opressão do Estado é o que acaba também saturando a bolha de problemas do cidadão comum, onde antigamente ele deveria ser o livre garantidor das liberdades individuais e da felicidade do cidadão, hoje ele muitas vezes viola esse papel em prol de sua própria segurança. O que se esquece é que apesar de querer torná-lo magnânimo, o Estado é feito de pessoas que se esquecem que governam para pessoas.
O crime maior é culpar o suicida por ser um suicida, ele não tem culpa senão por ter cedido à coerção exaurível da impessoalidade da sociedade e da opressão do Estado, muito pelo contrário, ele é também vítima do processo, só não a maior, em virtude de os seus parentes e amigos conviverem diariamente com a dor de perdê-lo de tal forma tão trágica.
Culpar a ciência também é outro equívoco, porque a ciência não é a causa dos problemas do indivíduo, tendo em vista que o suicídio não é uma questão dada geneticamente, mas socialmente. E a crescente recusa dos organismos da sociedade civil em debater esse tema é tão interessante que demonstra no final das contas o acobertamento da culpa existente da própria sociedade.
O suicídio pode ser como a prova cabal da tentativa desesperada da noção libertária do indivíduo ou da maior fraqueza dele frente à opressão coercitiva da própria impessoalidade da sociedade individualizada. A vida não se insere em nenhum dos parâmetros, o suicídio é uma manifestação do próprio desespero do indivíduo que é criminosamente ignorado pela irresponsabilidade da sociedade capitalista, onde ignora-se o indivíduo como ser e o eleva o capital como principal meta. É essa reificação do Homem que abre caminho a isso tudo.
É por isso que tenho a vontade escondida de querer me matar, mas como sou bem consciente que pelo o meu ateísmo não há outro lugar para onde eu possa ir, prefiro viver sobre a crescente pressão da sociedade que ignora a minha existência e ainda assim me pressiona a tomar do aspecto utilitário de sua formação, à ceder aos meus mais desesperados impulsos. Até agora tenho tendo algum sucesso, tanto que eu consegui terminar esse texto sem dar um tiro na minha cabeça, resta saber se no futuro continuarei com a mesma força de vontade.
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