quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Cem anos da Revolução Russa

          Pensei muito antes de escrever sobre o centenário da Revolução Russa, mas depois de algum tempo olhando para a tela branca do meu computador e eu não ter conseguido avançar no meu novo livro, me fizeram vir aqui escrever sobre o evento mais importante do século XX.Sim, acredito sim que tenha sido o evento mais importante e darei meus motivos.


         A despeito da própria Rússia não fazer questão de uma comemoração do evento, a Revolução de Outubro surgiu nos porões dos navios russos na Batalha de Tsushima, no levante do Encouraçado Potemkin e no levante em Odessa liderado por Afanasy Matyushenko e Grigori Vakuliuchuk, dois ucranianos que a historiografia esquece que foram os primeiros a fazerem um motim inspirados por ideias socialistas.



          Em 1905, a classe laboral petersbuguense saiu nos portões do Palácio de Inverno liderados pelo padre Gapon, que depois revelou-se agente da Okrana, e foi massacrada pelos cossacos. A Rússia é uma matriushka cheia de camadas e nessa sua diacronia histórica entre o passado e o futuro, os russos conviviam ao mesmo tempo com automóveis e arados de madeira.



       No dia 6 de novembro, Lenin e Trotsky faziam discursos no Congresso Pan-Russo, caminhavam pelo Smolny completamente preocupados, fazia exatamente quatro meses que Kornilov tinha tentado derrubar o governo Kerensky e a Guarda Vermelha salvou o governo provisório.



          Kerensky já não governava a Rússia, e a sua política de compromissos tinha dinamitado a popularidade do governo provisório. Além de ter instituído a lei marcial, os militares do front oriental literalmente deixaram Petrogrado desprotegida para os alemães atacarem a cidade e sufocarem os conselhos de trabalhadores.



           Antonov-Oeevsenko em uma pequena sala no Instituto Smolny coordenava as ações para a tomada do Palácio de Inverno enquanto o governo provisório fugia, Kerensky fugiu da cidade escondido numa viatura da embaixada americana e nunca mais voltou à Rússia. Os marinheiros de Krostandt que se amotinaram meses antes tinham sido libertos na calada da noite da Fortaleza de Pedro e Paulo e estavam a caminho da cidade.




           Os regimentos de junkers das escolas militares e do Batalhão da Morte, composto por mulheres, defendiam o Palácio de Inverno e no alto do segundo andar tinha uma metralhadora apontada para o Arco Vermelho, a entrada para o complexo do Hermitage.



        Trotsky fazia discursos fervorosos argumentando com os socialistas-revolucionários e mencheviques a necessidade de depor o governo provisório e passar o poder para os sovietes. Os soldados do Front faziam os seus relatos e os delegados das mais diferentes partes da Rússia ouviam entusiasmados os discursos de Lênin para a expropriação das terras, a paz incondicional e a abolição do regime provisório.



                 E foi durante a noite que Antonov-Oevsenko partiu com os seus homens, que tinham atacado o arsenal da cidade, e formou os pelotões da Guarda Vermelha. Os operários saíram do bairro operário de Vyrborg, do outro lado do rio Neva, e desceram a Nevsky Prospekt até se aglutinarem na frente do Instituto Smolny. Ali registravam-se e recebiam suas armas e bandeiras vermelhas, os fatídicos fusis Mosin Nagant e os revólveres Nagant ficavam nas mãos dos comissários.



          Os caminhões Mercedes-Benz e Fiat saíam lentamente cheios de homens que distribuíam panfletos ao mesmo turno que se juntavam aos blindados leves que decidiram aderir à Revolução.



          Os bondes da cidade estavam parados, os hotéis e cafés ainda funcionavam, as vitrines das lojas e dos cinemas continuavam acesas ao longo da Avenida Nevsky, os teatros apresentavam as suas peças normalmente embora a capital russa estivesse agitada.



          Os blindados seguiam lentamente e os caminhões cheios de milicianos vermelhos com baionetas fixas em seus rifles seguiam ao Palácio de Inverno. Zinoviev gritava : "Neste dia pagamos a nossa dívida para com o proletariado internacional".



               O Aurora estava a postos, os soldados soviéticos tinham cercado o Palácio de inverno mas os seus portões estavam escuros e o Palácio permanecia iluminado. Ali os soldados e marinheiros esperavam enquanto as peças de artilharia se montavam por trás de placas de madeira. Fazia frio e ventava, decidiram fazer uma fogueira enquanto os soldados esperavam.



              Antonov Oeveensko apareceu com o seu chapeu fedora e um revolver nas mãos, tinha os pulsos sujos de tinta, e pontualmente às 22 horas da noite o Encouraçado Aurora ancorado num dos canais da cidade disparou balas de festim. Era o sinal para o ataque. Aquela multidão de entre 200 e 300 homens atacou os portões do palácio sob o disparo dos cadetes junkers e das moças do Batalhão da Morte. O Palácio não precisou ser bombardeado, muitos dos defensores já tinham desertaram e os outros acabaram se entregando com o tempo.


           Com um documento nas mãos, Antonov subiu as escadarias do Palácio e procurou os membros do Tsik, o gabinete do governo provisório, e encontrou os ministros do governo Kerensky bêbados e atônitos, foi quando ele declarou por Ordem do Soviete de Petrogrado e do Congresso Pan-Russo, que o Governo Provisório estava destituído de suas funções.



             Esse foi o passo a passo do dia 7 de novembro de 1917, mas qual foi a importância da Revolução de Outubro para o resto do mundo? Primeiro foi de experimento político, a Rússia soviética foi o primeiro país a nacionalizar todos os meios de produção, abolir a grande propriedade e instituir um regime econômico planificado quando nenhum outro país ousou fazer isso nós pós-Primeira Guerra Mundial, depois, instituiu uma democratização do acesso à educação e à saude, eliminando o analfabetismo com uma campanha de leitura durante toda a década de 20. A psicologia do desenvolvimento infantil e do aprendizado surgiu na União Soviética nas mãos de Lev Vigotsky.


















          A Rússia entrou em Guerra Civil por quase cinco anos, teve que assinar uma paz desonrosa, vivenciou períodos de extrema dificuldade econômica, seca, fome, e ainda a intervenção de quase nove exércitos diferentes. Tudo isso alimentou o ressentimento dos bolcheviques e as desconfianças com as potências ocidentais e o isolamento dos bolcheviques alimentou a sua própria paranoia. Os bolcheviques acabaram tendo problemas com os anarquistas e socialistas-revolucionários, no final das contas consolidaram-se como partido único e instituíram o modelo da ditadura do proletariado.


          Isso não impediu, na verdade alimentou ao florescimento do cinema soviético nas mãos Sergei Eisenstein e Dziga Vertov, que praticamente demonstraram ao mundo que a Academia de Cinema Soviética podia produzir obras magníficas tanto quanto Hollywood.




          Seja como for, a Revolução Russa abriu a discussão sobre os direitos trabalhistas nos países democráticos, levantou o temor de que pudessem ter novas revoluções, combateu o analfabetismo na Rússia, universalizou o ensino e a saúde ao mesmo tempo que instituiu um novo regime econômico diferente do que havia sido tentado na época. Deu direitos isonômicos às mulheres, legalizou o aborto e eliminou as classes sociais. Também pecou pelo excesso, seja na brutalidade estalinista alimentada pela paranoia constante de uma guerra permanente com o Ocidente, seja pela concepção que havia inimigos internos, reais ou imagináveis.

           A jornada laboral na União Soviética chegou a seis horas por dia, sendo cinco para especialistas, tendo férias de três meses dependendo dos casos, licença-maternidade de quase um ano e paternidade de um mês, não havia desemprego na União Soviética e a despeito do déficit habitacional, os soviéticos produziram mais de cinco vezes habitações do que as que foram construídas no período final do czarismo. Os soviéticos mandaram o primeiro homem ao Espaço, o primeiro satélite e a primeira estação espacial.


         Seja como for, na medicina, os soviéticos foram pioneiros na neurociências e em cirurgias de alta complexidade, como as coronárias. 

          No ramo musical e artístico, os soviéticos além de financiarem artistas de renome como Prokofiev e Shostakovich, democratizaram o acesso dos jovens soviéticos aos conservatórios de música, incentivaram a leitura, sendo o povo russo até hoje um dos que mais leem livros no mundo, e grandes escritores como Madestam, Pasternak, Isaac Babel, e o serafim dos poetas, Maiakovsky, floresceram no período soviético.


          A equalização dos direitos dos homens com as mulheres no ocidente foi acelerada pelos soviéticos, que além de darem o mesmo salário e os mesmos direitos laborais e políticos para as mulheres, permitiu o divórcio antes do Reino Unido e os Estados Unidos, o aborto e outras medidas que ainda estão em discussão hoje. 

            Pode-se discordar da ideologia comunista, pode-se falar dos crimes de Stálin ou mesmo que o regime soviético teve inúmeros erros, e teve, mas foi o primeiro regime que realmente pensou de forma diferente desde o início, primeiro na concepção da economia, depois na concepção intelectual e educacional, na concepção social e na concepção de valores. Muitas coisas que temos hoje são fruto da Guerra Fria, são fruto das lutas por direitos sociais iniciadas na Revolução Russa e o regime soviético foi responsável pela derrocada do nazi-fascismo e pela existência de regimes democráticos no ocidente.

            Se hoje podemos falar em direitos humanos foi porque a União Soviética foi membro-fundador da ONU e incrivelmente assinou a Carta-magna, defendeu por muito tempo a abolição do trabalho escravo depois da queda de Stalin e auxiliou na guerra pela descolonização na África e na Ásia. Sim, os soviéticos também erraram, não eram perfeitos e muitas vezes  foram coniventes, seja com as ditaduras na América Latina, seja com alguns movimentos que terminaram piorando a situação de alguns povos na África e no Camboja.

            Mas antes de cuspir nas estátuas de Lenin, destilar o seu ódio contra a foice e o martelo e julgar os comunistas, lembre-se, a existência do seu sinal de Tv e  internet dependeu do satélite lançado em 1957 pelos soviéticos, assim como você ter assegurado o direito de ter saúde pública, educação e direitos a férias e a abono salarial.


Aos que se dedicam a ler, recomendo a leitura dos Dez dias que abalaram o mundo de John Reed, que conta o dia a dia na Rússia nos últimos dez dias que antecederam a Revolução Russa. Assim como recomendo Rumo à Estação Finlândia de Edmond Wilson que dá o início do panorama intelectual da esquerda até a ascensão de Lenin e dos bolcheviques na Rússia.  Assim como recomendo sem dúvida o Ano I da Revolução Russa de Victor Serge e as duas biografias feitas por Simon Montefiore sobre Stálin: Jovem Stálin e a Corte do Czar Vermelho.

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