"Digo à minha pena que continue escrevendo ou inscrevo as letras,
gravando apenas o esqueleto ou as marcas dos acontecimentos
daquilo que o tempo trança, e não precisa ser caro
à dignidade que sua tribo espera,
nem mesmo é prova de que vida e morte juntos valham qualquer coisa
O cronista sempre imagina que é o fim:
de sua "narrativa", -
e afinal, para quem ele escreve tudo e envia
suas mensagens?
Desde que a primeira letra foi lavrada em nome da narrativa comum,
a obrigação de continuar fabulando de um escritor a outro
vai passando, ano após ano a passagem de um século
vai sendo contada, e quando não há algo de novo ou os sinais
da decadência se acumulam, escreves sobre a crueldade
de tua época e a respeito de povos mal alunos:
Assim pensam os cantadores inclusive quando não é tempo de canções,
doam suas vozes, devem se manifestar porque antes deles
cantava-se diante das igrejas ou sobre o dorso dos cavalos; o povo cantante
não se indaga qual é a população ou o volume
da renda bruta; a grandeza medida são
os trovadores e o povo é tão grande
quanto os herois que são cantados. Tudo isso é antiquado, sabe-se,
pois depende da primeira letra , da primeira página
Do milagre recostado nos arreios de decassílabos
Se é bom ou mau, sequer deve-se indagar,
enquanto dura a escrita. Quando a língua deixar
de apenas preocupar-se com a canção, não haverá ninguém para
mensurar o valor do passado, nem para listar
o nome dos monastérios que retornaram às nuvens
ao serem chamados pelo antigo sacerdote.
Nem haverá quem busque pátrias na foz do rio."
Miodrag Pavlovich.
Miodrag Pavlovich morreu recentemente, no dia 17 de agosto de 2014 na cidadezinha alemã de Tuttlingen aos oitenta e sete anos de idade. Miodrag Pavlovich infelizmente não é um autor muito conhecido para cá dos trópicos, de fato, isso se deve a sua produção literária se notabilizar pelo idioma sérvio. Contudo, Pavlovich se destacou como um dos percussores da ótica modernista na literatura sérvia pós-Segunda Guerra.
Marcado por um estilo notoriamente fúnebre e bastante pessimista, Pavlovich foi um dos poucos poetas a captar a essência do que seria o horror da guerra. E insatisfeito com os desvios resultantes dessa, chocou-se muitas vezes com a ótica totalitária de construir a arte apenas como um objeto de consumo: o realismo socialista.
Miodrag Pavlovich estabelece um conceito bastante diferente entre cronistas e cantadores; Primeiramente porque os cronistas são homens dados a contar a realidade conforme eles a observam, e acreditam que o fato se esgota em si mesmo a medida que colocam a pena para escrever. As crônicas são banais, cotidianas e se esgotam facilmente. Nisso, embora as crônicas sejam um domínio da literatura, elas favorecem a construção de um romance-reportagem, como gênero narrativo, pois se baseiam conforme a forma de maneira semelhante a um editorial ou um conto jornalístico de fato.
Mas para quem de fato o cronista escreve? Quem é seu público alvo?
As antigas crónicas medievais se dedicavam a glorificar um soberano e descrever um relato "oficial' sobre uma dita realidade histórica, e a despeito dos exageros costumeiros em quantificar os números ou adjetivar por exemplo uma batalha, as crônicas eram verossímeis para uma época e passíveis de críticas ao futuro. A crônica como gênero narrativo é um dos estilos literários mais antigos da História, e está na fronteira cambaleante entre História e Literatura.
De fato "O cronista sempre imagina que é o fim: de sua "narrativa"", afinal a tendência em explicar um acontecimento sobre uma ótica singular foi o que pautou por muito tempo a construção das crônicas a respeito de determinados casos e situações.
"Desde que a primeira letra foi lavrada em nome da narrativa comum,
a obrigação de continuar fabulando de um escritor a outro
vai passando, ano após ano a passagem de um século
vai sendo contada, e quando não há algo de novo ou os sinais
da decadência se acumulam, escreves sobre a crueldade
de tua época e a respeito de povos mal alunos"
A literatura começa a se emprestar desse estilo literário à medida que a imprensa começa a emitir editoriais, num período muito avançado do enredo jornalista, de modo que as crônicas começaram a tomar proporções desvencilhadas do concreto e passaram para o domínio do verossímil. Os redatores de jornais, os escritores seguem a "obrigação de continuar fabulando de um escritor a outro", em nome da narrativa comum. A narrativa que se constrói no começo desse século XX, longo século XX, é explicada num contexto onde o jornalismo e a mídia impressa se destaca como meio de propagar informações. As crônicas não só estabeleciam críticas sociais, como eram análises de comportamento sobre determinados casos que ocorriam na realidade social.
"E quando não há algo de novo, ou os sinais de decadência se acumulam, escreves sobre a crueldade de tua época e a respeito de povos mal-alunos", creio que não há como ser mais claro do que isso, embora minha análise possa fugir em muito da de Pavlovich, acredito que essa seja a cerne do jornalismo baseado em crônicas de guerra, e cotidianas. As crônicas de guerra, iniciadas pela geração pessimista norte-americana, Ernest Hemingway, Fitzgerald, é uma geração que se dedica primeiramente à literatura, mas uma literatura engajada em relatar uma visão bastante particular e sombria sobre a realidade. A literatura, sob a base da crônica deveria descrever a crueldade da própria época em que se encontra o autor, onde se somam os sinais decadentes.
A decadência é o maior aspecto da crônica moderna, não que a crônica em si seja decadente, pelo contrário, constitui o estilo literário mais revolucionário já inventado desde a criação do romance, mas ao contrário do que era a ode de exaltação dos reis e dos grandes feitos, a crônica hoje se destaca em mostrar a decadência dos novos tempos (e não seu triunfo), mostrar críticas e levar o senso crítico aos seus leitores, mesmo que por meio de um humor elegante e refinado.
A crônica é diametralmente diferente dos cânticos, da arte dos cantadores. Os cantadores são alicerçados no domínio da tradição, eles cantam histórias antigas "doam suas vozes, devem se manifestar porque antes deles cantava-se diante das igrejas ou sobre o dorso dos cavalos; o povo cantante". Os cantadores, ou trovadores, nasceram numa cultura de linguagem oral que ainda estava no seu estágio de transição para uma cultura escrita.
De fato, o maior papel de um trovador é relembrar o que foi o passado aos contemporâneos e adentrar no culto às tradições absorvidas e aceitas no tecido social. Enquanto a crônica moderna é revolucionária, o trovador é um conservador das tradições.
O alaúde, o bardo, as odes. Isso tudo se findou no movimento trovadorista hispânico, uma franca remanescência medieva do que um dia foi o papel musicado do poeta. Honestamente é de se destacar que p cantador não é necessariamente a figura moderna do cantor ou poeta, mas sim uma absorção contemporânea de um conceito que um dia existiu:
O círculo dos cantadores "não se indaga qual é a população ou o volume da renda bruta; a grandeza da medida são os trovadores e o povo que é tão grande quanto os herois que são cantados." Os cantadores são na verdade um grupo difuso para muitos, contudo, eu vejo a figura do publicitário ou propagandista como um trovador que não se indaga apenas com o impacto da renda bruta, mas incutir certos valores que são cantados em um número maior de pessoas.
Esses publicitários originalmente não precisam ser revolucionários (mas muitas vezes o são)"Tudo isso é antiquado, sabe-se,pois depende da primeira letra , da primeira página.Do milagre recostado nos arreios de decassílabos',ou seja do milagre encostado no dogmatismo gramatical e na forma como se observa a primeira letra até o final.
"Se é bom ou mau, sequer deve-se indagar,
enquanto dura a escrita. Quando a língua deixar
de apenas preocupar-se com a canção, não haverá ninguém para
mensurar o valor do passado, nem para listar
o nome dos monastérios que retornaram às nuvens
ao serem chamados pelo antigo sacerdote.
Nem haverá quem busque pátrias na foz do rio."
Duvido que Pavlovich tenha falado o que eu interpretei em suas palavras, obviamente ele criticava claramente os rigorosos defensores do academicismo literário em contraposição aos cronistas, defensores de uma narrativa (embora ele também critique qual deva ser o enfoque dos cronistas). Cronistas e cantadores são meros aforismos para representar uma realidade pré-existente entre Vanguardistas e "academicistas". Contudo, o impacto com que a essa crítica atinge certos segmentos permite de certa forma extrapolar os limites da imaginação.
A literatura e consequentemente as outras ciências que também se utilizam de um método literário para a construção de suas narrativas com base científica (seja história, filosofia ou sociologia), se baseia nessa constante dialética entre cronistas e cantadores.