sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A Utopia e a realidade

            O burocrata nasceu da ótica de um estamento social bastante limitado mas ainda hipertrófico na figura da formação de um estado-nação. Ao contrário do intelectual, o burocrata não é treinado especificamente para pensar e sim para agir numa forma interna de maneira empírica dentro das regras pré-estabelecidas.

            Os intelectuais são relutantes em definir que seu raciocínio parte de uma ótica primariamente limitada da atmosfera dos "scholars"e o âmbito universitário e se projetam como líderes políticos, compartilhando teorias que levaram à vanguarda revolucionária na sociedade. Esse  papel do intelectual ativista surgiu na formulação de uma nova sociedade de culto ao raciocínio na Revolução Francesa, quando os intelectuais liberais passaram a agir de maneira direta nas lideranças revolucionárias.

           Tanto o burocrata quanto o intelectual, são pessoas nascidas em âmbitos sociais diferentes. Embora tenham emanado numa lógica preexistente muito clara: Sacramentalizar a educação oficial no âmbito de formação de funcionários do próprio Estado.

           A burocracia nasceu de uma noção idealista de gerir o Estado, o Leviatã, a partir de uma ótica corporativa, de que todos as repartições, escritórios, deveriam agir de forma bastante afinada como orgãos do sistema digestório ou circulatório e quando um processo não funcionaria direito, era porque o corpo não funcionaria direito. A medicina em muito condicionou à formação de um Estado segregado a funções bem definidas.

           Enquanto a burocracia prima pela ortodoxia das regras organizadas, o intelectual é naturalmente extravagante e excêntrico, prima normalmente para ideias originais e muitas vezes seu idealismo filosófico é repleto de um completo jogo de interesses; muitos dos que dizem intelectuais na verdade são meros oportunistas demagógicos. (vide Sartre e Arthusser)

           Não faltam também oportunistas na esfera do Estado, na verdade sobram, sobretudo com relação ao seio burocrata de maneira que o papel delicado de manutenção dos serviços à população através do Estado é prejudicado pelo pedantismo inconsequente e bem como pela inércia das repartições. Assim burocracia foi associada automaticamente aos nossos novos tempos com o vocábulo atraso, embora tenha nascido originalmente com a ideia de dar ordem  ao sistema difuso e confuso de uma ótica corporativa.

          Em 1905, o revolucionário russo Vladimir Ulianov escrevia: "a opinião antiquada de que a intelligentsia  seria... capaz de permanecer fora das classes" tinha que ser desconsiderada. De modo que o papel da intelligentsia era de se mostrar como um estamento ilustrado a conduzir o proletariado ainda inculto para as esferas da Revolução. O aspecto leninista de interpretação do fenômeno intelligentsia-proletariado esconde dentro de si um aspecto platônico de uma ilustração pelo conhecimento levaria a uma libertação dos "ignorantes", o Mito da Caverna de Platão. 

           E para acrescentar, o leninismo é também bastante carregado da óptica salvacionista de uma luta bastante aguerrida, que levará a um estágio de sangria e sofrimento, levará à pura redenção de uma sociedade sem classes. É claro que foi na Revolução Russa que vemos o intelectual como um revolucionário, que pega em armas e luta por suas próprias ideias. Esse fenômeno se mantém na Guerra Civil Espanhola e só morre no final da Segunda Guerra (alguns diriam que perdura nas ditaduras latino-americanas). 

             É a primeira parte da integração entre o intelectual e as massas. Essa sua crescente fixação pelo povo não é compartilhada pela burocracia. O burocrata tem ligeiro nojo e aversão pelo que vem a ser popular, obviamente por ter emanado numa lógica mercadológica de ascensão pelo conhecimento e concursos. Um burocrata é um concurseiro do passado, de modo que ele ainda tem fé no sistema de seleção e na ideologia do Estado. Assim, ele é um defensor aguerrido de valores pequeno-burgueses ou de sua classe média.

              Na questão do manuseio da realidade, o burocrata para evitar uma formulação de princípios teóricos e partir a partir da experiência pessoal do seu serviço não trabalha com, casos gerais, para ele só existem casos específicos. Para o intelectual, o que mais há são generalidades, e as especificidades são explicáveis a partir de um contexto pré-estabelecido.

               Esse empirismo que perdura sobre minha análise é tornado acabo pelo modo como a burocracia como mantenedora do culto à tradições e da ordem pre-existente consegue deformar-se rapidamente no formalismo rígido dos mandarins, se dissociando completamente da realidade.
                O intelectual também consegue desaparecer facilmente da realidade, isso é bem nítido quando no meio de suas associações teóricas, ele comete o erro crasso de desistir de viver na realidade, e mais cria incertezas absurdas do ponto de vista prático (vide pós-modernismo).

               É evidente que essa dicotomia entre o intelectual e o burocrático perdura por anos a fio, não só depois de um século inteiro de acadêmicos e funcionários públicos coexistindo, mas pelo contrário, a eminente fusão de ambos os aspectos gera a aberração que é o "medalhão" machadiano. O homem poderoso que se finge de inteligente e intelectualizado, mas no fim é um péssimo burocrata e um péssimo intelectual.

             A dialética entre o utópico e a realidade nos leva a crer que os burocratas são dignos de desconfiança, de pilhéria e de absurdos, enquanto os intelectuais de respeito e de profunda consideração por estarem presos à atmosfera das bibliotecas e dos cafés, de lerem coisas que são inacessíveis a alguns. Mas a utopia estabelece um padrão ético que a despeito de se proclamar elevado e desvencilhado do que vem a ser a estupidez de um estado mal-organizado, ela em si é um tanto mal elaborada pois não foi construída estritamente na realidade amostral, mas apenas em teorias gerais sobre o homem.

                  O realismo burocrático é estupidamente imbecil e estupidamente real. De tal modo que nem o intelectual nem o burocrata se contrapõe e ainda assim não se completam, pois são filhos bastardos de uma só esfera, a esfera do Estado. E para construção de uma moralidade existente no Estado deve-se lembrar das sábias palavras de Edward Carr, filósofo e historiador britânico: "A moralidade só pode ser relativa e não universal". A  realidade é também relativa  e a dicotomia entre utopia e realidade só  constrói uma expectativa do futuro, de burocratas eficientes e intelectuais cada vez mais realistas e práticos.

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