Nove de novembro, 1989. Após
dois dias de intensas manifestações na Alemanha Oriental, o governo socialista
da República Democrática Alemã caiu por terra com uma profecia proferida pelo
antigo filósofo alemão e patriarca do socialismo, Karl Marx: "Tudo que é
sólido se desmancha pelo ar".
Marx certamente não sabia que
pouco mais de cem anos depois de sua morte esse seria o prenúncio do epitáfio
da ditadura do proletariado no regime de socialismo real. De fato, creio que
Marx tenha se tomado de intenso arrependimento nos dias mais funesto da DDR.
Talvez suas teorias sobre o desenvolvimento do socialismo e da revolução
proletária estivessem certas ao destacar que apenas num país ocidental o
socialismo poderia ter seu mais pleno desenvolvimento como regime político.
O problema que a Alemanha Oriental não
era um país ocidental nem completamente desenvolvido. Os portões de
Brandemburgo escondiam uma Alemanha dividida depois da selvageria da Segunda
Guerra Mundial, de fato, os alemães pagaram muito caro por terem se seduzido e aderido
(em maior ou menor grau) ao nacional-socialismo de Adolf Hitler e do NSDAP. A
Guerra num mundo traumatizado pelo antigo conflito mundial, bem como o rastro
do genocídio nos Bálcãs, na União Soviética e nos campos de extermínio na
Polônia levaram a um revanchismo e uma onda moralizante intensa nos Julgamentos
de Nuremberg.
Para os países ocidentais, vide França
e Inglaterra, era completamente inaceitável que um "país civilizado"
pudesse fazer uma matança tão indiscriminada sem que a própria moral da
sociedade levasse ao questionamento do regime. Mas a hipocrisia com que os
ingleses e franceses viam o problema era notável: O massacre da Guerra dos
Boêres, pelos ingleses, e a Guerra da Argélia, pelos franceses, são indícios
que a violência não era uma novidade para as potências coloniais. A ideia
inicial que fomentou a violência do conflito no Leste Europeu foi sem dúvida
uma tentativa imperialista da Alemanha, que já era experimentada por outros
países muitos anos antes.
A obsessão foi paga de forma muito
cara. A Alemanha novamente ficou com a reputação de vilã (no Tratado de
Versalhes ela já tinha sido encarada dessa), sua economia foi arrasada, sua
população civil foi posta a inúmeras provações (embora não comparáveis às
provações dos poloneses, russos ou judeus) e o seu país foi desmembrado em
quatro.
Sim, a Alemanha foi desmembrada em
quatro para que não ressurgisse novamente um "nacionalismo alemão".
De fato, essa concepção de divisão dos estados alemães nasceu na política do
Cardeu Richelieu de criar um poder imperial francês na Europa em decorrência da
fragilidade política dos estados alemães. Mas como tudo na História, os anos
certamente são um bom motivo para mudança das coisas. O poder hegemonico não
poderia ser alcançado nem pela Inglaterra, nem pela França. E sim pela União
Soviética.
A pátria do socialismo não estava mais
só, houveram levantes espontâneos em prol do socialismo em alguns países da
Europa, como a Tchecoslováquia, Iugoslávia e Bulgária. Em outros locais, o
regime de economia planificada foi realmente imposto, como a Polônia, Romênia,
Hungria e Alemanha. O Exército Vermelho, e o próprio Uncle Joe, eram bem
populares no Ocidente. A ideologia marxista, dificilmente, teve um grau de
tamanha expansão quanto depois da Segunda Guerra.
A formação de estados socialistas
associados à União Soviética é notável. O baluarte do socialismo era conduzido
pelo braço forte do Grande Timoneiro, "o grande camarada Stálin, o gênio,
herdeiro de Marx, Engels e o insuperável Lênin". Foi o momento em que o
país que por vinte e dois anos viveu no mais completo isolamento teve a
oportunidade de se mostrar como uma potência. E mais do que isso, um farol de
sonhos para a juventude.
As desconfianças entre os
Aliados cresceram. O gabinete conservador de Winston Churchill retomou uma
postura francamente anti-russa que já existia bem antes da Primeira Guerra
Mundial, e o próprio primeiro ministro passou a ter desconfiança dos reais
interesses de Stálin, em especial na Polônia. Lembrando que o Reino Unido
entrou no conflito para garantir a soberania do regime polonês (e manter o status quo do Cordon
Sanitaire ).
Os americanos na administração
Roosevelt sempre se notabilizaram por uma certa simpatia pelo regime soviético,
e isso marca por exemplo o reconhecimento da União Soviética pelos Estados
Unidos (tardio) apenas em 1933, com a vinda do diplomata Maksim Litvinov para
mostrar suas credenciais ao presidente Roosevelt.
Contudo, a falta de capacidade
diplomática de Harry Truman em lidar com os soviéticos trouxe um objeto de mal
estar, que levou até mesmo a trocas de farpas entre o presidente norte-americano
e o representante soviético Viatcheslav Molotov. Alguns acreditam que as
atitudes de Truman levaram a um enrijecimento do trato entre a diplomacia
soviética e americana, o que propiciou o início da Guerra Fria.
Berlim foi conquistada.
Tomada pelo 3° Exército de Choque do 1°Front Bielorruso, o 150° regimento desse
Exército ergueu a bandeira soviética no alto do Reichstag, onde anos
antes,Adolf Hitler tinha forjado um incêndio, servindo de estopim para o golpe
que daria no governo de Weimar.
Inicialmente era
possível a população transitar (ainda com o controle dos guardas armados do
NKVD em alguns pontos de saída), posteriormente, à medida que as relações entre
aliados pioravam, a repressão começou a se formar. Os alemães orientais
passaram a ser prisioneiros em seu próprio país, a Alemanha Oriental passou a
ser uma espécie de campo de concentração a céu aberto.
A pobreza
dos primeiros anos foi notável. Logo mostrou-se inviável dividir a Alemanha em
quatro, e os setores de controle inglês, francês e americano vieram
posteriormente formar a República Federal Alemã, com sede em Bonn. Berlim
Ocidental virou um enclave capitalista no meio do mar comunista. Em 1948, o
mundo assistiu o Bloqueio de Berlim, o acesso à cidade foi limitado por tropas
soviéticas. Limitando a ajuda humanitária americana à população de Berlim ocidental.
A crise
diplomática foi resolvida apenas um ano depois quando as duas superpotências,
URSS e os EUA, sentaram-se para discutir a situação. A questão que a
recuperação da Europa ocidental tenha se recuperado bem mais rápido que o bloco
soviético (embora a reconstrução soviética tenha sido notável, com taxas de
crescimento anual beirando a 20% em alguns setores), só é explicável pelo Plano
Marshall.
O Plano Marshall nasceu como uma tentativa de contenção do
comunismo pela a Europa, e não como uma obra de filantropia estadunidense. A
injenção de milhões de dólares a fundo perdido era algo impossível a uma
economia fragilizada como a União Soviética. Com a melhora substancial do
padrão de vida do alemão ocidental, não foi muito difícil compreender porque
milhares de berlinenses orientais fugiam da DDR,com sua pobreza e repressão
exacerbadas;
1953 é um ano de
mudanças. Stalin morre, a União Soviética é agora uma superpotência que possui
não só a bomba atômica, e sim a bomba de hidrogênio. O mundo assistiu o
conflito da China com olhos arregalados, e a derrota de Chiang Kai-shek levou o
país mais populoso do mundo ao bloco socialista. A Guerra da Coreia ainda não
tinha terminado quando Stálin bateu pela a última vez as suas botas de couro no
chão.
A crise de sucessão
soviética e a corrida presidencial após
os dois mandatos pífios de Truman levaram a uma trégua parcial das hostilidades
dos dois países. A ascensão de Kruschiov
e a denúncia do estalinismo deram esperanças de melhorias nas relações com os
países ocidentais. Isso realmente não ocorreu.
A União Soviética
se tornou a ponta do pensamento científico, lançou um satélite no Espaço, o
Sputnik. Enviou o primeiro ser vivo para fora da terra, cadelinha Laika. E
estourou a maior bomba atômica já lançada na terra, a Tsar Bomba. Em 14 de
abril de 1961, Yuri Gagarin conheceu o espaço de perto pela primeira vez. E
seria o primeiro cosmonauta a realizar o sonho de Julio Verne.
O Vietnã estava
há quase quinze anos em conflito, a Europa Ocidental estava praticamente
reconstruída. E a Europa Oriental caminhava a passos largos em seu crescimento,
o padrão de vida soviética chegou ao seu ápice na época de Kruschiov, e o
próprio governante soviético falava em dar ao cidadão soviético um padrão de
vida similar ao cidadão americano, com todas as seguridades sociais que só eram
possíveis num estado francamente socialista.
Contudo os
cidadãos alemães não se sentiam incluídos na “grande família soviética”, o socialismo
sempre teve uma penetração modesta na Alemanha, a sua maior ascensão foi no
período confuso de conflitos entre os camisas pardas e os comunistas nas ruas.
A socialdemocracia de Kautsky sempre foi mais influente entre os segmentos
médios alemães.
O status de vilã
da guerra nunca escapou aos alemães, eles viviam num padrão de vida inferior
aos seus conterrâneos ocidentais, não partilhavam das mesmas liberdades e para
piorar eram observados de forma brutal pelo seu próprio país. A tendência de
governos altamente repressivos na Alemanha é uma marca de Bismarck até
Honecker.
A evasão de
cidadãos para a Alemanha Ocidental era cada vez maior. Na madrugada do dia 13 de
agosto de 1961, a esperança de um mundo melhor desapareceu. O Homem tinha
chegado ao Espaço, mas não tinha conseguido sair de sua própria capacidade para
a estupidez. Os berlinenses tiveram uma surpresa ao encontrar a sua cidade
cortada por guardas armados, arame farpado e juntas de tijolos de concreto e
argamassa. Nascia o muro de Berlim, e com ele a Cortina de Ferro física.
Konrad Adeunaer
tentou acalmar a população da Alemanha Ocidental, mas isso foi um tanto inútil.
Willy Brandt, na época prefeito de Berlim, reclamou o quanto pode com as
autoridades da Stasi e da DDR. Entretanto nada pode ser feito e a declaração
de Walter Ulbricht, líder da Alemanha
Oriental passou a ser uma franca mentira:
“Vou interpretar
a sua pergunta da maneira que na Alemanha Ocidental existem pessoas que desejam
que nós mobilizemos os trabalhadores da capital da RDA para construir um muro.
Eu não sei nada sobre tais planos, sei que os trabalhadores na capital estão
ocupados principalmente com a construção de apartamentos e que suas capacidades
são inteiramente utilizadas. Ninguém tem a intenção de construir um muro!”
O socialismo nasceu como uma ideologia universal, que deveria em
tese, ser mostrada para o mundo inteiro para ser uma proposta viável frente ao
capitalismo. Essa era a proposta inicial de Karl Marx ao escrever o Manifesto
Comunista e recitar a canônica frase: “Trabalhadores do mundo, uni-vos. Pois
nada tendes a perder senão os seus próprios grilhões”.
O que foi o Muro de Berlim senão o sufocamento do ideário
socialista? A Alemanha se desentendeu consigo mesma e agora dois povos tinham
identidades diferentes. Não digo que viver na Alemanha Oriental fosse uma
merda, não era, o padrão de vida de um cidadão alemão oriental era bem melhor
que o padrão de vida de um cidadão brasileiro hoje.
A Alemanha Oriental tinha uma jornada de trabalho de cinco horas,
o sistema educacional e de saúde era público e funcionava. Qualquer cidadão da
Alemanha Oriental poderia tirar férias, ter licença maternidade e paternidade.
A despeito dos comícios, paradas militares estafantes e discursos vazios a vida
do cidadão alemão era comum e bastante banal.
O maior problema era que tinha mais agentes da Stasi, polícia
secreta da Alemanha Ocidental, do que cidadãos economicamente ativos. O
controle de informações era absurdo e as piadas dessa época são notáveis:
“Vocês já se perguntaram por que na Alemanha Oriental os policiais
sempre andam em três? O primeiro escreve, o outro lê. E o terceiro serve para
prender os dois “intelectuais”.”
De Trabants à comida enlatada. Viver na DDR não era o maior sacrifício
na Terra. Mas onde existem Mercedes e apartamentos com calefação, sempre haverá
cobiça. A grama do vizinho sempre é mais verde.
A múmia política de Honecker beijava a outra múmia do Brejnev. A política
do Partido Comunista Alemão não representava o grosso da população, no fim a
decadência e estagnação corroeram a “sociedade perfeita”, e a Utopia de Thomas
Morus se tornou o Admirável Mundo Novo de Huxley.
Na parada de comemoração da Revolução de Outubro, em 7 de novembro
de 1989, milhares de jovens e adolescentes saíram as ruas em busca de liberdade
e transparência. Muitos nem sequer acreditavam no fim da Alemanha Oriental. As
reformas de Gorbachiov começaram a ter efeito no bloco soviético. A polícia
alemã ensaiou uma repressão, que sob os olhos dos ocidentais eram uma nova onda
de barbarismo; Todos lembravam o discurso de Ronald Regan: “Mister
Gorbachiov, tear down this wall”
Não foi Gorbachiov que derrubou o
Muro, foi a profecia de Marx: “Tudo o que é sólido se desmancha no ar”. O
regime sólido da Alemanha Oriental era representado pela pequena imagem de um
muro acinzentado de concreto, laminado com uma capa de cimento, água, areia e
pedra. Um monte guardas armados com AKs-47, rotweillers e brigadas de tanques.
Tudo caiu, como deve cair. Nada é sólido o suficiente para ser imortal.
A queda do Muro acabou com a União
Soviética? Não. A União Soviética acabou porque não conseguia mais vender um
sonho para a sua população há um bom tempo, o cidadão soviético vivia a partir
da inércia desde a chegada do poder de Brejnev. A crise de abastecimento, a
estagnação, a Guerra do Afeganistão, Chernobyl. Corrupção. Gorbachiov. Golpe.
Tudo isso levou a demolição do regime criado por Lênin há 97 anos atrás.
O socialismo morreu? Não. Só se
dinamizou. Também se dividiu, do trotskismo ao maoismo. Da socialdemocracia com
coloração um tanto liberal até o “socialismo bolivariano”. Marx ainda é lido,
não como papa, mas como teórico. E isso é bom.
Pessoas esquecidas vem sendo
resgatadas, felizmente. Nunca se leu tanto Gramsci na esquerda, como agora.
Bukharin saiu do seu esquecimento na década de 30, mas ainda não foi
completamente recuperado. A socialdemocracia teve maiores avanços,
incrivelmente (para quem nunca deu nada, Kautsky incrivelmente conseguiu
superar até Lenin). Hoje o debate entre o marxismo é a retomada do debate do
século passado, o marxismo deve ou não seguir uma via democrática? Até hoje não
há consenso.
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