domingo, 2 de novembro de 2014

O violento sujeito chamado "brasileiro"

       Como é complicado ser democrático. Cinquenta anos depois de um golpe militar, centenas de pessoas marcham na Avenida Paulista pedindo intervenção militar já. E por quê? Porque há uma descrença absurda na ordem institucional.

       De fato o que é ser brasileiro senão ser esquisofrênico? Exige-se de um governante tudo, mas do cidadão nenhum esforço. A consolidação do nacionalismo brasileiro é limitado há uma meia centena de pessoas no estádio cantando um hino nacional em coro, quando outrora lutavam contra a implantação da FIFA no política brasileira. Gritavam: "Não abro mão, quero dinheiro para a saúde e educação".

       Eu sinceramente estou confuso se devo escrever ou não sobre isso, porque sinceramente pouco acredito que tenham eco essas palavras. Mas a democracia realmente é uma coisa que eu não acredito que exista no Brasil, sinceramente, depois de 2010 pra mim isso é emblemático. E não estou falando isso porque compactue com ideias de direita que pedem a intervenção militar na política, na verdade eu tenho até repulsa por tais ideias. A questão é que a cidadania brasileira é uma cidadania de papel.

       Digo cidadania de papel porque ela é ampla e irrestrita a todos os cidadãos que tenham voz e exercício pleno de suas funções, o problema que ela não é nem ampla e irrestrita, ela é setorizada a segmentos sociais muito claros.É óbvio para mim que quem mora na Zona Sul do Rio ou em Higienópolis/Morumbi em São Paulo possui direitos muito mais evidentes do que o negro da favela que mora na Rocinha ou Capão Redondo.

        Enfatizei a palavra negro porque é uma coisa também associada a questão social. A sociedade não é só dividida socialmente, mas racialmente. E essas duas divisões são coincidentes, o maior índice de pobreza e vulnerabilidade social são nas populações negras e mestiças brasileiras. A questão não é que não exista brancos pobres ou negros ricos, existem e são grupos expressivos inclusive, a questão é que a abordagem dos problemas existentes é bastante difusa e falha.

        Temos um problema muito claro e arterial que é a desigualdade social. A desigualdade social é a origem das ilhas de exclusão; Apenas quando resolvermos essa questão que resolveremos questões associadas como o racismo, a segregação e a violência.

        O problema que a última tentativa de resolver a questão da desigualdade social, o Bolsa Família, foi amplamente criticado por segmentos da sociedade civil por não ter tido o retorno esperado. Eu concordo com a análise de que esse neokeynesianismo não tem nada de Keynes, a microestrutura com a qual as reformas sociais que o governo Lula se pautou na verdade não são vergalhões de titânio, mas de pura madeira de compensado. São fracas, e criou uma ilha de dependência de segmentos inteiros da sociedade civil ao Estado.

         O Estado sempre será um agente perigoso que merece ser controlado. Nunca confie no Leviatã cem por cento. 

          O Bolsa Família retirou famílias inteiras das garras do caudilhismo interiorano e dos coronéis ao observar que a sua vulnerabilidade econômica é a razão para que o seu empobrecimento seja aproveitado de formas funestas pela a elite local. O problema é que o Bolsa Família não se dedicou na inserção econômica dessas populações no mercado de trabalho, seja criando fábricas estatais, companhias ou grandes empreendimentos (sobretudo no Nordeste).

          Sim há grandes obras, como a construção da Ferrovia Norte-Sul (parada) e da transposição do Rio São Francisco (que parece que ninguém lembra, mas é uma obra bem maior que o Canal do Panamá), o problema é que ao invés de incentivar que essas populações participassem das obras, ou mesmo que elas tivessem um vínculo empregatício nos setores econômicos associados, o governo priorizou terceirizar essas obras para grandes empreiteiras (algumas envolvidas em graves escândalos de corrupção).

         Eu apoio o Bolsa Família, mas com ressalvas. Era para ser um programa válido por um período determinado de tempo e no mais deveria ser locatário de uma profissionalização dos "beneficiários" que no fundo não são beneficiários, porque o Estado não faz mais do que sua obrigação, vide de passagem. Desde a Constituição de 1988 a sociedade civil brasileira optou por uma via social-democrata de garantias sociais.

        O problema maior hoje é conciliar esse ideal social-democrata de bem-estar social com crescimento econômico minimamente aceitável. É possível, é. A resposta está em locais onde uma economia mista de desenvolvimento foi experimentada, como a NEP na URSS, ou mesmo o modelo de desenvolvimento nórdico. De fato é possível, mas não é fácil, exige muito trabalho não só da arregimentação das normas sociais, controle sobre as finanças, mas do próprio trabalhador braçal que deverá se empenhar mais para produzir dividendos à poupança nacional.

          É uma opção difícil que demorará anos para ser feita. Mas só poderá ser feita com a democracia.


          Existem problemas com relação a esse modelo de desenvolvimento. A forte dependência da economia pelo Estado é uma delas, o país sempre tem que intervir nas relações econômicas para incentivar o crédito, emitir mais papel, dar empregos e no mais dar socorro e protecionismos às empresas nacionais. O problema disso tudo que cria uma artificialidade que não se sustenta a longo prazo, a indústria nacional não é competitiva, o crédito em excesso cria um capital virtual baseado no consumo, que sabidamente não se sustenta por muito tempo e a oferta de empregos no Governo, mais os auxílios do governo ao empresariado onera a balança de pagamentos e dividendos do governo. Resultado: O Tesouro fica com pouco dinheiro em caixa e não tem muita margem de manobra para as flutuações econômicas cotidianas.

         Essa é a origem da crise que vivemos hoje. Mais: A falta de investimentos no setor de escoamento da produção, a difícil capacitação do trabalhador hoje, o sistema fiscal excessivamente complicado que favorece também a sonegação e a falta de iniciativa do empresariado.

        
         É praxe dizer que todas as revoluções foram feitas na falta de pão. Da Revolução Francesa, Revolução Russa até hoje. A fome lacera o brasileiro? Ainda não, mas a inflação daqui a pouco o fará. O maior problema é que a inflação incide sobre os mais pobres e o modelo nacional-desenvolvimentista adotado pelo governo há algum tempo, é baseado no crescimento sob inflação. E vem dando errado.

         A revolta com o governo do PT é evidente em muitos segmentos sociais. E nisso coloco não só a velha classe média, e a elite, mas também o mito da "nova classe média" que está super-endividada e não consegue pagar as contas, e também até nos pobres, nesse caso conduzidos numa onda profundamente estranha de conservadorismo neopentecostal.

          Entretanto, as eleições de outubro solaparam questões internas no Brasil que são bem claras há um bom tempo. O Brasil é um país marcadamente dividido.

O Brasil sempre foi um país de múltiplas identidades, isso todo mundo sabe e é consenso desde as conversas mais rebuscadas da Academia até as rodas de conversa de botequim em Vila Isabel, a questão é que a criação do mito nacional é um dos maiores pressupostos da identidade brasileira.

        Três pilares: Paz, Natureza e Abundância. O Brasil é um país gigante (em sua própria natureza) que apesar de ter um braço forte, tem uma mão amiga. E sua natureza abundante e bastante rica o levará a condição de uma potência desenvolvida.

       Os três mitos fundadores do brasil são justamente movimentos sociais solapados pela a elite: A Inconfidência Mineira, a Independência do Brasil e a Proclamação da República. Em nenhum dos três eventos houve realmente uma participação francamente popular.

       A questão é que existe vários Brasis.

        Primeiramente: Dois Brasis, o Brasil dos números e do papel, estatístico e cujo formalismo bacharelesco das leis o tornam uma condição ideal de como um país deve exercitar o exercício legal: Esse é o país das pranchetas, Brasil país do futuro. O idealismo tropical

       O segundo Brasil é justamente o Brasil real, onde a gente tem a comprovação concreta e empírica que pouca coisa que é desenhada nas pranchetas é realmente aplicada. Seja os números da tabela do IBGE, o crescimento econômico estimado no primeiro semestre, ou mesmo que a constituição e as leis conferem direitos e deveres de maneira irrestrita a todos os cidadãos brasileiros. O choque entre o Brasil ideal e o real chega a ser brutal.

     
         Mas o Brasil não acaba nisso:

         O Brasil é rico ao mesmo tempo em que é pobre. A favela convive com as mansões da Zona Sul. É seguro e perigoso. É corrupto e honesto. É singular e plural. Esquisofrênico em sua própria natureza.

          De fato é impossível ter consenso e unanimidade nas decisões de soberania nacional, há grupos de interesses muito difusos seja no Norte, Nordeste, Sul ou Sudeste. Seja no interior ou na cidade. Ou na morro ou no centro. As redes de interesse são frágis num país continental como o Brasil.

           E para piorar mais é que o pleito de outubro foi acirrado. Nenhum dos candidatos falou publicamente em dar continuidade ao que vem ser feito (nem a Dilma que estava se reelegendo), devido à insatisfação geral da população. Aécio Neves, candidato da oposição, PSDB, perdeu por mísera diferença de pouco mais de 2%, ou cinco milhões de votos.


          Os dois projetos tanto do PT como do PSDB tinham semelhanças e continuidades, só tinham diferenças de abordagem. Mas não foi em si os projetos que mais importaram nas eleições de 2014, foram os ataques pessoais de ambos os lados, enquanto a população estava interessada em soluções para os problemas imediatos. Havia denúncias, escândalos, acusações e trocas de farpas na propaganda eleitoral e nos debates. Fiquei absolutamente convencimento que não evoluímos muito democraticamente falando de 1989 para cá, e digo porque pareceu um infantilismo o nível das discussões entre os candidatos.

          Eu me somei aos que votaram nulo. Não era possível votar em dois candidatos que mais se dedicavam a se atacar do que realmente dialogar em termos concretos pelo bem das eleições.

         E essa polarização incentivada por marqueteiros (digo em todas palavras, marqueteiros) que incentivaram o discurso da violência e um profundo nível de baixeza é o que tornou a situação mais difícil. O Brasil ficou mais difícil que estava.

        Os militantes do Aécio e de Dilma se digladiavam com as porta-bandeiras em meio a praça pública, se batendo inclusive. Quem ostentasse uma bandeira do PSDB no carro corria o risco de ter o carro arranhado ou apedrejado e vice-versa. Quem andasse com um botom da Dilma na roupa poderia ser insultado na rua. E a internet foi usada para demonstrar essa violência toda, com episódios de racismo, intolerância e segregação.

           O Facebook ficou insuportável de se acessar por muito tempo, o bombardeamento de informações, boatos e mesmo especulações foi exaustivo. E pela primeira vez desde minha militância aos quinze anos, eu senti nojo da política.


             A questão que esses ataques não pararam. Seja porque atacaram a sede da Veja com pichações e lixo (tenho minhas dúvidas se aconteceu de fato ou não), seja porque violaram os direitos de resposta em nome de fins de ataques pessoais.

              A questão é que pra mim o exercício da Justiça Eleitoral foi bem ruim e foi aquém do que eu esperava, não só porque a biometria deu tantos problemas (eu sinceramente acreditava que o registro biométrico daria maior segurança, no fim passei a duvidar da segurança do voto), mas porque o TSE foi pra mim bem parcial para um lado da campanha. Tenho minhas teorias de como se deveu essa parcialidade, mas eu deixei de acreditar que realmente a democracia funcione do jeito que está.

           É válido que um partido político possa questionar o resultado do pleito eleitoral sem que seja chamado de golpista (sim eu li isso em muitos blogues e jornais, o PSDB foi acusado de golpismo), afinal de contas a eleição foi acirrada. E é válido questionar a segurança das urnas, porque nenhum sistema informatizado é praticamente seguro em si mesmo. 

          O que foi criado nisso tudo foi um discurso sim de ódio, e foi quando vimos que a violência incrustada na sociedade civil se libertou de uma só vez. Seja no racismo e  no separatismo de alguns militante do bloco perdedor que estavam atentando contra a soberania nacional, seja o discurso de ódio com que a oposição foi encarada por alguns militantes da situação, que os nomearam como traidores da pátria e da democracia por serem contrários ao governo.

           Não há outros inocentes senão os que não estão no foco dessas discussões. O Brasil é muito grande para ter uma divisão binária. Nem tudo é preto ou branco, mas cinza. De modo que é terrível que tenhamos continuado com essa pobreza política e ideológica com que marcaram as eleições brasileiras.


         No mais, o Brasil é indivisível e uno em sua própria natureza, e qualquer ideia de separatismo é crime; Inafiançável inclusive, e deve-se lembrar que crimes de lesa-pátria ainda são passíveis de pena de morte. Questionar o governo é válido e eu questiono muitas vezes, mas no exercício democrático. Se não há democracia brasileira (como eu não acredito que exista) é cabível ir às ruas para lutar contra o corrompimento das ordens institucionais, seja pelas redes de poder ou aparelhamento político das instituições (não que não houvesse antes).


         O que não é aceitável é que se exprima um discurso de ódio baseado no racismo contra os nordestinos, pobres que por alguns serviram de "curral eleitoral do PT", tivemos mostras sólidas de que sem a pluralidade não seríamos um terço do que somos hoje.  Tampouco se pode aceitar um discurso de ódio contra a oposição pelo simples fato dela questionar o resultado de uma eleição.

         O poder judiciário, depois de tudo o que ocorreu, o poder mais dissociado da sociedade. E sim, deve-se abrir agora o questionamento se ele não deve ser eleito pelo próprio povo, ou se poder se autorregular da forma como vem feito, sendo nomeado exclusivamente pelo Executivo (e sancionado pelo Congresso, sem participação popular).

          E não, não acredito que o Brasil saiu mais forte dessa eleição. Eu duvido mesmo que tenha saído algo saudável disso tudo; O medo de um golpe pra mim é muito real, seja da situação ou oposição, há muitas desconfianças reais na democracia, e ataques de ambos os lados, cabe ao cidadão comum agir agora como agente ativo no exercício democrático ou ele realmente não se mostrará nem um pouco merecedor da democracia.


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