domingo, 2 de fevereiro de 2014

Tenente Filipov

        A valsa corria lentamente como o ponteiro do relógio atrasado no salão da  chefatura de Irkutsk, a estrada de ferro mandava um recado bem em meio à neve que caía no inverno preguiçoso da Sibéria. A Maria-Fumaça brincava de assustar os animais da floresta e a valsa... corria delicadamente na balada. Um, dois, três, um, dois, três.

        "Vês hoje sua última dança
         Caro soldado
         Hoje é sua última balada
         Amanhã cairá numa cilada

         Beije sua querida e amada
         Leve seu rosto na memória
         Nas montanhas da Manchúria
         Seu rosto há de congelar

         Fique calmo, meu filho
         Dance um pouco essa balada"


         O salão estava meio embriagado com as notas estridentes do piano de madeira desafinado... Nada na Rússia parecia se mover mais rápido que aquela balada, um passo para frente, um para o lado, um último para trás. A guarnição partiria amanhã de manhã para os confins da Ásia, a barba de Filipov sempre bem aparada e com um pouco de cera sorria para Marina naquela última balada. Ele iria pedi-la em casamento aquele dia.

         Nada impediria a Sibéria de cantar com seus ventos uivante de cortar o coração a fazer melodia daquela novela. Nas colinas da vida, aqui estão os maiores corações melosos que amam só por um momento e choram por dois. A vida é tão simples quando se ama;

          Filipov dançava galantemente com Marina, em seu uniforme de gala com as dragonas douradas, as esporas das botas arranhando o chão encerado e o sabre atrapalhando a perna de se mover. O quepe tinha sido posto meio de lado, seus olhos azuis se aproximavam docilmente dos olhos de Marina. Ele era um tenente do Exército do Czar. Um cossaco das estepes na Sibéria interminável. Seu sabre retorcido atrapalha a dançar, seu coldre está meio gasto, mas ele sorri para Marina. É um menino em uniforme de marechal;

           Sorria naquele ultimo dia, corre, corre, luta, ponha-se de pé. Não caia, você é russo. Corra, traga glória a sua terra natal. Lembre-se de Marina, lembre-se tenente. Não desista, a Rússia é grande, seu amor maior ainda. Maior que todos os romancistas, tire sua baioneta. Arme a sua carabina. Cuidado.

           Lembre-se de como é bom ser oficial;

          O chá que teve com senhor Danilov.

           "— Como vão as coisas, Gravilo Oleksevich?"

           "— Não tão adoráveis quando gostaria que fossem — puxou um pouco de chá preto do samovar — Nunca estarei feliz aqui no meio de selva congelada"
           "— Paciência, Gravilo. A Sibéria é grande, mas a Rússia é maior. Eu sei que você é cossaco, mas logo logo estará nas estepes da Ásia. Lutando contra os japoneses na Manchúria."
          "— Sei..."

          "— Não me parece contente — o velho bebericou um pouco da bebida escaldante. Suas barbas brancas por um momento escureceram com as gotinhas que saiam do canto de sua boca. Dmitri Danilov era um importante mercador de peles de Irkutsk, simpático, mas completamente analfabeto, não entendia nada de poesia ou de amor. Era iletrado como uma porca no cio.


         Filipov via com bons olhos o velho septuagenário, algo nele trazia um respeito de "desdushka". Ouvia o velho com condescendência nos bailes realizados pelo chefe da guarnição, mas era bobo em pensar que Marina era tão bonita para ser filha de seu pai. Mas aqueles olhos infantis tinham uma dívida aos olhos fracos de Dmitri Trofimsevich. Filipov iria pedir a mão de Marina naquela noite.

      O piano corria com as teclas, a orquestra militar acompanhava o acordeón com pouca paciência. Os soldados brincavam com as notas e tocavam uma pequena sinfonia doce no fundo.


       — Quero me casar com sua filha.

       O velho deu um sorriso doce com seus dentes escurecidos de tanto chá e tártaro. Ele estava alegre por Gravilo Oleksevich.

        — A flecha do Cupido acertou nosso tenente de jeito, hein. Soldado ou não, você é um homem. Um bom homem. Marina já me falava de você, como você era dedicado e decidido. Bom, você realmente é decidido. Por que vai para a Manchúria?

        — Eu me alistei.

        — Você é louco. Aquilo é fim de mundo — deu de ombros e bebeu seu chá. Filipov estava visivelmente descontente, mas foi quando Dmitri Danilov falou: — Você tem minha benção. Dará um bom genro.

        Corre, soldado. Corre, tenente. Cuidado, cuidado. Saque sua espada. Aqui não é Moscou, aqui é mais longe, aqui é Manchúria. Levanta. O czar está chamando. Grande Pai, abra as portas do céu e da Manchúria. Nós não vamos abandonar essa colina.

       Cuidado, cuidado, granada.

       Granada...

        — Marina...
        — Sim — disse a menina sorridente.

        Os dois dançavam no canto do salão, o eco dos trombones da orquestra era tão estridente que os cristais do lustre tremulavam docilmente sob as cabeças de todos na gafieira. O prefeito era um bom dançarino e observava a todos com um vigor nada senil. Marina e Gravilo apertavam o passo da valsa, nunca faziam feio quando estavam juntos, mesmo Marina ainda sendo uma menina sardenta de quinze anos e Gravilo um manequim em dragonas e numa túnica militar. Os dois pareciam felizes naquela canção monolítica.

        — Faz dois meses que ando pensando nisso, desde que vim para cá. Sabe é meio difícil dizer isso, mas...
       — Ah, Gravilo Oleksevitch, estão tocando nossa canção...
       — Eu estou pensando que talvez nós...
       — "Em torno de nós tudo é calmo..."
       Nada mais tinha a dizer, a canção entoava em seu coração e pela primeira vez na vida Filipov entendia que estava apaixonado. Fingiu estar machucado na perna, tentou mover a bainha de sua espada e no espaço entre a lâmina e o couro retirou um artefato. 

       No meio do salão, sob o olhar desaprovador dos outros casais que desviavam dos dois que haviam parado naquela celebração. Oleksevich ajoelhou-se diante da jovem menina de cabelos escuros e rosto macio e branco como a neve e prostrado nessa posição meio servil, o tenente abriu a palma da mão com seus olhos claros de tanta certeza. Seus hábitos antes tão rígidos amaciaram-se depois de alguns goles de vinho e uma boa sinfonia;
     
      
       — Marina Dmitrevna, você me daria a honra de ser minha esposa?

       E Marina saiu correndo do salão para surpresa de todos.

        

        Corra, corra tenente. Cuidado! BUM!ZABUM! Rakalash cabum! ARRRRHHHHHHH!!!!! Corra, corram todos... Para as trincheiras, para as malditas trincheiras, corram das granadas, corram cossacos. Cuidado com os cavalos. Os cavalos! Meu Deus, cuidado, cossacos! Para o chão! Para o chão! Zzzzzzz BUM! 

       Corram para aquele buraco. AQUELE BURACO! Quê buraco? 



       Corram... corram... corram...

       Metralhadora. Ratatatatátatátáta´ta´ta´ta´ta. Morram seus diabos malditos. Pelo Czar! URRRRRRAAAAA!!!!!!  Cuidado. Zzzzzaaaabuuummmmmmm!!!!!!! BUM! BUM! Ratatatatáta´ta´ta´tatátátáta´ta´ta´ta´ta. ZzzsBOOOWM!"

       Tenente!

   
        Tenente....


         Tenente?


         "É claro que quero me casar com o senhor, tenente Filipov", sorriu-se Filipov no chão.

         " Tenente?"

         " Ele está sorrindo; Por que ele está sorrindo?"

          Os olhos não se mexiam a cabeça também não. 
           "Ele está bem? Ele sabe que temos que voltar?"

           " Ele nem sabe que perdeu as duas pernas agora... Ajude-me a tirá-lo daqui!"

            "Marina Dmitrevna... Marina.... " regojizou um pouco de sangue e fechou os olhos

            "TENENTE!"



A mãe querida está derramando lágrimas, 
Sua jovem esposa está chorando,
Todos estão chorando, 
Insultando o acontecido, amaldiçoando o destino! 




         


                                                                    1905

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