domingo, 23 de fevereiro de 2014

Animações soviéticas: uma evolução e revolução artística

              Não há nada mais divertido do que numa madrugada esquecida você rever as animações que os departamentos da Soyuzmultfilm ( Союзмультфильм) produziam em plena Guerra Fria. As animações na União Soviética tem um papel importante na propaganda partidária desde meados da década de 20 quando o famoso cineasta Dziga Vertov começou a produzir roteiros de animações como Kinopravda, retratando como caricatura a burguesia, a republica dos trabalhadores, etc.

"Brinquedos Soviéticos, por Dziga Vertov, 1924"

          No auge do estalinismo a propaganda através dos desenhos toma outras proporções à medida que impulsiona a propaganda do regime a partir das crianças, os Pioneiros, uma espécie de agremiação próxima ao escotismo criada na União Soviética para repassar os valores de classe e os ideais das crianças desde o início da alfabetização, o ensino da doutrina marxista-leninista vê-se conjugado com o abcedário e as contas de matemática.

                            "Kinopravda de Lenin, também de Vertov, 1924" retratando a vida e morte de Lenin


         A propaganda soviética pelos cartoons também tinha uma tentativa de levar reflexões e estimular a leitura dos indivíduos mais idosos da sociedade, os pequenos cinematógrafos eram levados às atalaias de aldeia no interior da Ucrânia ou da Sibéria Ocidental através das carrocerias dos recém construídos caminhões da GAZ, através do consórcio da Ford Motor Company com o regime soviético, onde reproduziam nas escolas ou nos clubes de trabalhadores os filmes mais populares desse período, como Volga, Volga,  Alexander Nevsky e os filetes de desenhos animados de produção nacional. Os soviéticos se tornaram produtores de material de animação de excelente qualidade, embora inicialmente bastante caricatural.
"Imperialista Americano: Branco e Negro,por  I. Ivanov-Vano and L. Amalrik. Mezrabpomfilm, 1933'
                            
        O trabalho que a Soyuzmiltfilm nos anos negros da Yejovchina (1936-1938) era de informação, propaganda contra os "inimigos do Povo" e de tentar levar ao esquecimento os acontecimentos nefastos das deportações e julgamentos-espetaculos. Os julgamentos-espetáculo tinham uma conotação metologicamente falando de levar a catarse a população civil e de externar os problemas cotidianos, como a fome, as péssimas condições de vida, o isolamento da sociedade soviética e o medo de uma invasão ou simplesmente do governo, os desenhos eram maneiras de mostrar que apesar de houver muita coisa desagradável no "comunismo em construção", ainda havia motivos para rir.

        Na iminência da invasão da União Soviética deflagrada no dia 22 de junho de 1941, com a Operação Barbarossa a propaganda produzida pela Soyuzmultfilm tinha a função de informar a população do interior a como lidar com os invasores, a como organizar uma resistência e a identificar eventuais traidores, mostrando os alemães como corvos nefastos que destruiriam os grãos das fazendas coletivas, sabotando as fábricas e descarrilhando os trilhos, assassinando as mulheres e crianças e escravizando os camponeses em sua orgia de sangue. Mas também os desenhos explicavam os acordos que a  União Soviética assinara com os britânicos, tentava mostrar que havia uma mobilização geral do Exército Vermelho que sempre era retratado como o mais forte, embora tenha sido atraiçoado pelos nazistas.


                                   "Noticiário animado 1-4 - O que Hitler quer.
                                                                            - Pegando os piratas fascistas
                                                                            -Atacar o inimigo nas linhas do Front e em casa
                                                                           - Um poderoso aperto de mão
                                        Dirigido por V. and Z. Brumberg, A. Ivanov, O. Khodataeva, e I. Ivanov-Vano
                                                                                 estúdio Soyuzmultfilm, 1941 


        A propaganda soviética desse período em questão é basicamente uma  propaganda de guerra, não muito diferente da propaganda de seus pares ocidentais, entretanto o refinamento com que os estúdios de animação da União Soviética tomaram tantas proporções que em vias de propaganda explícita os estúdios soviéticos chegavam a superar em qualidade de desenho e roteiro, os estúdios de Walt Disney. Entretanto, em apelo com o público juvenil, que é a faixa etária proeminente do público-alvo, o apelo da propaganda soviética era quase um grão de arroz perto do Mickey Mouse e o Pato Donald.

Os invasores fascistas sendo retratados como javalis selvagens
       A iminência de um novo jogo das sombras e de uma guerra silenciosa a partir dos reclames de Potsdam trouxe uma nova situação na sociedade soviética, os antigos aliados da guerra passaram a ser inimigos e novos parceiros surgiram na construção de uma rede de estados conjugados à economia soviética. A propaganda não poderia fugir muito disso, a propaganda por animação manteve o mesmo padrão até a morte de Stálin, com um refinamento ideológico questionável e um apelo junto ao público infantil mais questionável ainda.


                                             "Mr. Wolf, 1949, por V. Gromov. Soyuzmultfilm."

        Contudo, isso se altera na época de Kruschiov quando há uma mudança nos meios intelectuais soviéticos, as perseguições e a ditadura da opressão sobre a intelligenstsia desaparecem e o regime percebe que a produção cinematográfica é algo que está bem à frente das animações, que parecem nesse momento fracas distorções diante ao que os estúdios norte-americanos Walt Disney e Warner Bros produziam.

         O apelo psicológico passou a vigorar de certo modo nas animações devido ao impacto profundo que a Grande Guerra Parte Patriótica estabeleceu na sociedade soviética do pós-guerra, além de relembrar constantemente o choque da guerra, os estúdios de animação passaram a se dedicar a dois públicos alvo: As crianças, em primeiro lugar. Depois aos adolescentes e jovens adultos em segundo.


          As animações para crianças passaram a ter um elemento subjetivo em suas representações, com cores muito vivas e desenhos muito ilustrados, contando a partir de parábolas, como um cachorro que vira congressista ou uma reunião de pássaros numa floresta, os desenhos passavam os valores da sociedade soviética e tomavam a ocasião para alfinetar sempre o "inimigo número um" da sociedade, o capitalismo e os Estados Unidos.

                                           "No coração da floresta, Albert Ivanov, 1954"

         As animações para o segundo público mantiveram o estilo ideológico embutido de forma clara que marcou os desenhos animados da época de Stalin, mas o refinamento da composição narrativa e da forma do desenho trouxe um novo patamar aos desenhos animados soviéticos que passaram a se mesclarem com conceitos como humor, ironia, ou mesmo pessimismo. As animações não necessariamente precisavam ser faladas para expressar suas ideias, na verdade, uma marca desse período é que a fala nem sequer era um elemento importante nos desenhos.
            "Imperialista Americano: O  Milionário. Escrito pelo famoso cineasta russo Serguei Mikhalkov,  Soyuzmultfilm,                                                    1963 mostrando a saga de um cachorrinho que se torna um milionário e congressista"

        Talvez um bom motivo para isso seja o fato que as animações também eram exportadas para países aliados do regime soviético, como os países do Leste Europeu, da África, Indochina e do Oriente Próximo e para a compreensão de seu conteúdo o estudo de russo não deveria ser obrigatoriamente necessário.

        Com a queda de Nikita Sergueievich e a ascensão de Leonid Brejnev a URSS manteve elementos que destacaram o período de Kruschiov, como a política de paz e guerra surda, bem como a tentativa de retirar o isolamento patológico do sistema soviético ao mundo, entretanto com o ressurgimento de um neoestalinimo nesse período houve também uma certa pauperização da produção de animações, embora ainda carregada do refinamento da produção de charges animadas da época de Kruschiov.

                                           "Uma lição não aprendida", Vladimir Karavaev, Soyuzmultfilm, 1971

       É nisso que se apresentam desenhos que falam sobre a fraternidade, valores ligados à ideologia do Partido, programa espacial e de temática psicoanalítica, a produção de desenhos soviética inspirou num futuro médio (agora), a produção de animações bastante refinada em países antes desconhecidos, como Azerbaidjão, Cazaquistão, Bielorrússia e outros, além de ter sido exportada a aliados, vide o caso da Coréia do Norte, que é um país profundamente isolado, marcado pela monarquia vermelha do Junche e que ainda assim é um grande exportador de animações no seu próprio território.





               Umas das melhores animações soviéticas já produzidas (e a minha favorita) é "O Violino do Pioneiro" de 1971 que tem um toque emocional e psicológico muito aguçado, com uma trilha sonora instigante e um enredo narrativo essencialmente triste e melancólico, tanto na apresentação do desenho, cuja utilização de cores sóbrias e sombras traz uma sensação de escuridão e de desalento, como o fato do desenho não ser narrado, dando uma sensação de falta de conforto.

                                          "O Violino do Pioneiro, por B. Stepantsev, Soyuzmultfilm, 1971"

Um comentário:

  1. Achei seu texto incrível, meus parabéns! A propósito de onde vc retirou tantas informações? Sou estudioso da área e gostaria de saber mais sobre suas fontes. Se puder me fornecer isso ficaria muito agradecido. Meu e-mail é luiscarloscristofaro@hotmail.com
    Muito obrigado! Continue com seu exelenexc trabalho!

    ResponderExcluir

Haber e o uso da ciência para o "bem" e para o "mal"

A figura mais controversa pra mim na história da Ciência não é Oppenheimer (pai da bomba nuclear), nem Alfred Nobel (criador da di...