domingo, 2 de fevereiro de 2014

Calmaria insuspeita

       Nos acontecimentos difíceis da Guerra Civil, o Exército Vermelho teve grande dificuldade em derrotar as forças de Denikin no flanco esquerdo do Volga, nas colinas do vilarejo de Tsaritsyn. A cidade foi reconstruída e se tornou uma cidade-modelo da modernidade de um novo país que surgia das cinzas da pólvora e do liquor escarlate do sangue. Stalingrado.

      Para além da guerra e das dificuldades dos primeiros anos, Stalingrado era uma cidade em pleno crescimento. Vinha se tornando a terceira cidade mais importante da Rússia e um orgulho para o Partido Comunista; A calma bucólica de cidade de interior, projetada para ser a grande via de ligação do Cáucaso com  a cadeia de canais e rios que chegavam até Moscou tornaram a cidade um seio imponente da indústria soviética. Com uma siderurgia própria, uma fábrica de tratores e dezenas de escolas e teatros. Era uma cidade arborizada por excelência que assistiu o mais profundo retrato de barbarismo quando a guerra pegou a todos de surpresa.

      Em junho de 1941 a Alemanha invadiu a União Soviética. Em setembro/outubro, o berço da Revolução, Leningrado foi posta sob cerco. No final de outubro e início de novembro, era Moscou que estava em risco. A recuperação foi difícil e ainda assim a ofensiva de verão no Sul comandada pelo 6° Exército na Operação Azul pôs fim ao desejo de uma guerra rápida e que não fosse tão letal ao país. Essas são figuras de como a destruição impacta todo o seio de uma cidade e das pessoas que viviam em seu território, trabalhavam em suas fábricas, brincavam na rua e conversavam nas praças;

      

     O trabalho pulsante da Fábrica de Tratores de Volgogrado, em sua jornada de oito horas, de manhã até a noite em pleno vapor com os operários montando a carroceria dos veículos na esteira da linha de produção. O fordismo estava em prática desde 1929 na União Soviética quando o governo iniciou os acordos com a Ford Motor Company para a construção de uma fábrica de automóveis e tratores na União Soviética.
     
      Os tratores seguiam num delicado e não menos pulsante processo de constituição dos mecanismos do motor e da carroceria que era feita a partir da fundição de ferro em aço. Os trabalhadores inspecionavam e montavam os componentes, apertando porcas e parafusos enquanto a esteira rolante movia o equipamento numa linha linear até a fazenda coletiva mais próxima. O ambiente escuro e abafado, com o odor característico de suor e óleo era um dos centros nervosos do bairro industrial da cidade, no flanco esquerdo do rio Volga.

       Após a jornada estafante das oito até as seis, os operários saíam da indústria com a firme convicção de descansar um pouco depois de um longo dia de trabalho, alguns seguiam imediatamente para o Clube dos Trabalhadores de Stalingrado.

      


         O Clube não era muito longe do bairro operário e ficava a frente de uma das muitas praças de Stalingrado. O retrato imponente de Stalin numa das muitas reuniões na Casa dos Sindicatos abria a entrada do imponente edifício neoclássico de dois andares e os retratos dos altos funcionários do partido ilustravam as janelas do edifício. Ali, os operários tinham acesso aos jornais do país, o Pravda e o Izvestia. Podiam jogar um pouco de futebol, praticar tiro ao alvo ou simplesmente descansar.

         A organização desses clubes cabia ao Soviete local e sempre que era conveniente havia aulas de teoria marxista e "consciência de classe".


         A guerra parecia ser uma coisa do passado, que nunca mais tocaria aquela cidade no centro da Velha Rússia, a não ser pela inconveniente recordação que ali abrira-se uma grande disputa na Guerra Civil e isso o museu da Batalha de Tsaritsyn fazia questão de relembrar e lembrar o "feito heróico do camarada Stalin" na guerra Civil.


          O museu era como muitos outros construídos no auge do stalinismo, a magnificência da arquitetura era algo aplaudido pelo regime na sua construção do culto ao Grande Timoneiro, embora sua aparência fosse mais de uma biblioteca ou de uma prefeitura, o edifício era dedicado unicamente a "grande dirigência do Vojd que derrotou os inimigos magistralmente nas colinas de Tsaritsyn e pôs Denikin para correr".


         No caminho da fábrica ao Museu da Defesa de |Tsaritsyn poderia-se assistir a um filme ou espetáculo nos quatro teatros da cidade, onde as pessoas se reuniam para assistir as comédias pardas de como são repulsivos os "burgueses e toda a sorte de inimigos do Povo" ou mesmo assistir uma das inúmeras peças de Gorky.

         

        Casas de espetáculo era o que não faltavam em Stalingrado, infelizmente boa parte foi destruída com a guerra.


         Entretanto o centro movimentado da cidade numa segunda-feira trazia inúmeros pedestres às ruas procurando seus afazeres. Operários seguiam ao trabalho, as mulheres iam às compras, as crianças à escola. E assim seguia a vida em Stalingrado.

        
        As esquinas da cidade, as lojas de departamento como essa no centro de um dos suntuosos boulevares da cidade abriam as portas para um tipo de sociedade diferente. Uma sociedade baseada no socialismo;

      Na praça central as crianças brincavam em torno da fonte na rua da Estação de trem, onde uma bela praça com abetos e acácias se desenvolvia de forma circular no centro da cidade.



A praça Vermelha de Stalingrado continuava com o mesmo ritmo de sempre, preguiçoso e lento.



           De todos os olhares, as crianças corriam atrás do sorveteiro no parque. Um velho num acordeón tocava uma linda canção enquanto famílias pousavam para um retrato. Havia uma festa naquele dia, o chafariz indicava. Um casamento talvez.


          Tudo isso a guerra arruinou.
         

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