Ela dorme num sono delicado de criança, ela fecha seus olhos pesados e abre a sua boca, a respiração fina toma o quarto inteiro com o abraço delicado de Morfeu numa noite de sábado. Aquela pequena criança que vi crescer diante dos meus olhos, cuja fragilidade e inocência saltavam aos olhos naquela maca daquele hospital, soube amaciar três corações duros de uma família rígida e sobretudo severa. Aqueles olhos grandes por cima das bochechas rechonchudas, o semblante ainda calvo da infância recém adquirida, ao tocar em suas mãos pequenas o irmão mais velho, quase quinze anos, toma para si a responsabilidade de ser tutor daquela criança que aparecia pela primeira vez ao mundo.
Aline, os pais sabiam que a infância daquela menina não seria fácil, mas todos de coração aberto adotaram aquela pequena criatura dentro daquela casa grande de três quartos. Aos poucos, aquele bebê chorão amanteigava a todos com seu sorriso sincero muitas vezes, sua disposição e sua iniciativa. Aline engatinhava pelo chão frio de madeira da sala quando pela primeira vez tentei com que erguesse seus olhos para o mundo, com passos frágeis e desengonçados, a criança que outrora foi um bebê, aprendia a andar insistentemente. Quando caía, não chorava, aprendia e tentava de novo. Quando soube que era a sua vez de andar e conquistar o mundo, ela desbravou a estante da sala, escalando nos móveis pesados e nas mesas do escritório do seu pai. Caminhava pelas escadas sob o olhar preocupado da mãe, muitas vezes se tropeçando no caminho.
Ao balbuciar, Aline aos poucos, com uma voz fraca começava a ter voz, depois a falar e depois a esperniar. Seus olhos eram antes a única coisa que espremiam suas emoções mais puras, agora palavras e apenas palavras a faziam conquistar o coração das pessoas com sua inteligência impar. Aline era uma criança madura, mas nunca se esqueceu que era uma criança, brincava de boneca, brincava de carrinho, a sua diversão era conviver com outras crianças. Mas infelizmente, na rua não havia outras crianças e em casa, apenas adultos. Sozinha e solitária, Aline cresceu.
Sem esperar nada dos outros, a pequena criatura mostrava a sua perseverança e voz. Aline repartia o dinheiro do seu lanche com as suas amigas, entrava nas brigas mais estúpidas para defender o que acreditava, se iludia com mentiras e nunca reclamava quando era enganada. Aline era um anjo que aos poucos crescia e aprendia a matemática, que antes tanto gostava e agora odiava. Aprendia a língua portuguesa com dificuldade, às vezes escrevendo errado, às vezes sendo corrigida pelo irmão educador.
Certa vez Aline disse que não gostava de História, foi como se tivesse partido meu coração, mas aos poucos, fui conseguindo trazer um pouco de seu coração para os livros, ela lia mitologia grega, assistia documentários comigo e gostava muito de jogar videogame. Foi com oito anos que ela me viu partir de casa, seu coração não aguentou, todos os dias Aline chorava. A dor da separação me tomou, mil quilômetros de distancia e a única comunicação que tinhamos era pelo computador. Aline ficou triste e deprimida, numa casa grande, sendo cobrada pelos pais. O irmão que sempre estava por ali, hoje não estava, não havia ninguém que a levasse para o cinema, que a ajudasse na lição de casa, ninguém com que pudesse conversar sobre o dia corrido na escola. Cada vez mais sozinha, Aline era uma rosa no meio do deserto.
As amigas se aproximavam e se afastavam conforme a conveniência, o pai duro, sempre cobrava o melhor desempenho da parte dela sem se importar se ela estava feliz ou não com a vida dura que lhe foi posta sob os ombros pequenos. A mãe, algumas vezes sobrecarregada, ficava incapacitada de vivenciar os momentos felizes com sua filha, e aos poucos sua saúde mental ficava dilacerada.
Aline às vezes não comia, ou quando almoçava era tarde. Aline quase nunca penteava os seus cabelos, e seus olhos grandes começavam a ficar cada vez mais fundos. Quando voltei a Brasília, Aline me recebeu de coração aberto e me abraçou, chorando com a saudade nos meus ombros. Nunca esqueci o seu amor puro, mesmo com as recriminações do meu pai, Aline sempre esteve do meu lado.
Quando continuei meu namoro às escondidas, Aline fez de tudo para que meus pais não desconfiassem que estava me encontrando com minha namorada e me dava conselhos mais sábios do que uma criança da sua idade poderia dar. Ela ficava sozinha nos finais de semana na frente de um computador, enquanto o pai sempre trabalhava e a mãe cuidava da casa. Era assim a vida de Aline, escola e casa.
Com nove anos, nove anos ela começou a ter sequelas do seu nascimento. Aline que tinha lutado pela vida numa encubadora, vivenciou a indecisão de estar com sua vida sob um fio, ela às pressas tinha feito uma cirurgia para descolar o estômago que tinha nascido com as paredes unidas, e por vinte dias não sabiamos o que seria feito de minha irmã. Em nove anos nada tinha acontecido, apenas a vaga lembrança da cirurgia ficava sob a forma da cicatriz no abdomen que tantas vezes ela quis esconder quando íamos para a praia, com vergonha.
Aline era feliz, era um anjo que queria o bem de todos nós. Aos poucos ela foi trazendo a humildade que tanto faltava aos meus próprios ombros, aos poucos foi trazendo alegria à vida sofrida do meu pai, e era o melhor recado do amor que minha mãe tanto tinha para com nós filhos. Aline era a alma de nossa casa.
Com nove anos, Aline partiu. Sob nossos próprios olhos, de maneira abrupta, sem qualquer sentido ou lógica. Das dores de estomago que achavamos que fossem gases ou mesmo intoxicação alimentar, a coisa evoluiu para algo mais sério, e os médicos não souberam tratar direito a despeito de todas as vezes meus pais a levarem para o hospital quando ela passava mal. Aline faleceu exatamente um mês antes do meu aniversário, vítima da incompetência humana, enquanto ela vomitava sangue e a hemorragia esvaziava seu corpo frágil de vida, eu presenciava meu pai chorar, minha mãe rezar e Aline, Aline, nosso grande anjo, manter a calma quando nós três não sabíamos o que fazer.
Aline sempre teve medo de médicos, sempre teve medo de hospitais e chorava quando lembrava das cirurgias. Ela aguentou a dor sem reclamar, sem falar, até que ela partiu. Num domingo à tarde, sob os olhos de todos, sem que nada pudessemos fazer para salvá-la. Ela só ficou nove anos conosco, nove anos maravilhosos e duvido que tenha existido criança mais inteligente e amável do que minha irmã, no leito de morte, Aline chorava, não pelo que ia acontecer consigo mesma, mas com nós que tanto dependiamos do seu amor para continuarmos vivos.
Hoje, quatro meses depois, tudo que vejo são suas coisas espalhadas pelo quarto intocado, que ela tinha tanto medo de dormir sozinha à noite, que tantas vezes eu aparecia para contar histórias. Seus brinquedos continuam nos mesmos lugares de antes, suas roupas dobradas antes ficavam espalhadas pela cama. Suas fotos são a única imagem do seu espírito bom e gentil que hoje traz um vazio incomensurável a olhos vistos.
Nunca mais irei encontrar com minha irmã no final do dia, nunca mais irei sair com ela para o cinema ou ensinarei que os romanos tinham destruído Cartago no final das Guerras Púnicas. Nunca mais terei a minha companheira de videogame, que sempre me convidava para jogar Minecraft com ela ou tampouco a amiga que por vezes só se importava que eu estivesse vivo ao seu lado e me abraçava sem qualquer motivo aparente. Aline foi a única pessoa que realmente me trouxe felicidade e ela partiu sem que eu pudesse me despedir.
Seus olhos grandes se fecharam para sempre, suas mãos pequenas agora estavam geladas e enquanto choravamos, ela se foi num caixão de mogno escuro, com um vestido branco e uma tiara. A terra encobriu os nossos sonhos e com um amargo sabor de derrota, enterramos minha irmã sem que ela pudesse ter aproveitado a vida. Nada mais de conquistas, Aline nunca iria ter namorados, nunca iria se formar, ter um emprego ou filhos. Tudo isso lhe foi tirado;
Sua paz de espírito e serenidade agora só serão recordações. Aline é a constatação que a vida nunca é completamente justa com as pessoas boas.
quarta-feira, 15 de agosto de 2018
Haber e o uso da ciência para o "bem" e para o "mal"
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