sábado, 6 de junho de 2015

Entre a cegueira e a mediunidade

        Pensar no papel ideológico irrefletido dos movimentos sociais atualmente é pensar o próprio futuro da esquerda no horizonte político logo à frente. Na esteira entre o colaboracionismo e a verdade, muitos dos hoje militantes, jovens entusiastas da causa socialista hoje são tomados pelo ligeiro sentimento impensado de simples ódio contra as estruturas sociais constitutivas da sociedade. Um ódio não racionalizado, ódio por ódio que muitas vezes chega a ser infantil.

     Infantil digo, não para desqualificar as naturezas do movimento estudantil, que muitas vezes é bem planejado e executado, mas infantil porque é tomado por um esquerdismo incoerente com a própria disciplina revolucionária. Lenin, em 1920, no capítulo 2 de seu pequeno ensaio, Esquerdismo: Doença infantil do Comunismo, destaca: 
"Hoje, sem dúvida, quase todo mundo já compreende que os bolcheviques; não se teriam mantido no poder, não digo dois anos e meio, mas nem sequer dois meses e meio, não fosse a disciplina rigorosíssima, verdadeiramente férrea, de nosso Partido, não fosse o total e incondicional apoio da massa da classe operária, isto é, tudo que ela tem de consciente, honrado, abnegado, influente e capaz de conduzir ou trazer consigo as camadas atrasadas. "

      A disciplina com o esforço revolucionário é um compromisso incondicional e consciente do papel da esquerda na sua luta para a transformação social, do qual não se devem eximir sacrifícios, um verdadeiro revolucionário deve estar consciente de seu papel como tal, deve estar pronto para a linha de choque e estar bem consciente dos riscos que a causa socialista impõe, de modo que a carreira política de um militante de esquerda não é fácil e não é um mar de rosas como alguns imaginam.

   Quando se toma para si a bandeira militante deve-se ter consciência de três eixos: Dedicação, inteligência e capacidade de adaptação. As situações na esfera social impõem que o individuo militante  deva se eximir de uma série de reclamações e complexos de coitadismos para optar a sua defesa ideológica de maneira coerente, deve ter a inteligência suficiente para compreender a dinâmica do processo e ter percepção sensorial para utilizar a série de insatisfações sociais que possam conduzir a um esforço coletivo justificado, e mais do que isso, ter jogo de cintura para saber lidar com os próprios problemas cotidianos no seio do movimento.

   Os estudantes devem antes de mais nada, ter uma visão ampla, e não uma visão limitada às universidades e rodas de discussão estudantis, que no fundo são inúteis, afinal de contas são pouco deliberativas e defendem questões, muitas vezes do plano prático. Se os estudantes querem manter sua essência revolucionária devem aprender a ouvir o povo, lidar com o povo,  e saber conversar com a classe trabalhadora. 

    Os estudantes são imbuídos de uma arrogância absurda frente aos trabalhadores em dois aspectos: O primeiro é em desconsiderar o conhecimento previamente estabelecido desses indivíduos no que considera a suas reivindicações principais, laborais e cotidianas; E a segunda, não menos importante, é se considerem completamente cientes do que está em jogo e se considerarem espertos o suficiente para conduzir uma luta cuja força está nos trabalhadores, e não numa dúzia de "corujas eruditas enrustidas de operários".

   A força de todo movimento está com os trabalhadores e é obrigatório a todo militante saber compreender seus dilemas diários, seus problemas e seus objetivos no que concerne aos seus próprios direitos laborais. Os trabalhadores sabem sim e tem plena consciência de seu papel na sociedade, devemos parar de ser tão cegos ao ponto de acreditar que depois de cem anos após a Revolução Russa que o estágio de alienação do trabalhador industrial continua o mesmo de 1917, as pautas do movimento operário hoje são bem diferentes das pautas daquela época porque os fins são outros.

   O que os erros estalinistas e maoístas ensinaram é que a esquerda deve ter a humildade de reconhecer seus próprios erros e fazer sua autocrítica de maneira eficiente, mas a autocrítica também não pode beirar ao assembleísmo irracional e inconsequente, porque a despeito de tudo, o socialismo deve ser pautado também por termos de eficiência e não por discussões metafísicas sobre o papel do proletariado e da vanguarda revolucionária na sociedade capitalista pós-moderna.



     Afinal de contas, a despeito do pós-modernismo ter alargado o espaço de discussões no movimento socialista internacional, sobretudo nas questões sexuais e étnicas, ele por vezes acaba retirando o foco do espaço de discussões do movimento socialista justamente pelo o excesso de críticas e questionamentos das "verdades absolutas do socialismo". Todo movimento político tem verdades absolutas. Isso é inegável, porque uma ideologia é um construto social baseado em grandes verdades previamente fixadas, se houver um excesso de questionamentos filosóficos, o movimento em si é desmoralizado.


     Com isso, eu não estou declarando que o militante deve ser um indivíduo acéfalo, pelo contrário, reafirmo, deve ser bem inteligente e capcioso, deve compreender qual é o seu papel no movimento e criticar a própria liderança quando for necessário. Nisso entro na discussão do que é cegueira política. Tal como George Orwell certa vez destacou na sua crítica ao stalinismo, e sobretudo no movimento stakhanovista, o excesso de fé na causa e na liderança é um desvio gravíssimo de qualquer maneira. Na vida, deve-se aprender a desconfiar até da própria sombra, nunca deve-se confiar, sobretudo em alguém que lhe dá ordens. As lideranças são as partes mais propensas aos erros, pois apesar de terem visão geral do todo, são cegas às particularidades.

      Siga sempre o seu bom senso antes de tudo, nunca se deixe tomar completamente pela tolice de seguir cegamente a liderança. É contraditório com o que os escritos marxistas estabelecem? Sim. Mas nunca é demais desconfiar do outro, a humanidade é falha por natureza.

      Cegueira. Um ensaio sobre a cegueira. Dos erros da militância: 1) Acreditar que mudará o mundo sem muito esforço. 2) Acreditar ser dotado de mais consciência de classe do que os seus pares. 3) Ignorar os anseios da classe trabalhadora. 4) Dotar-se de arrogância injustificada no seio do movimento. 4) Exercer desmedidamente a autocrítica de forma exagerada. 5) Ser cego às falhas dentro do próprio movimento.

     Acho que me esqueci de uma dúzia de trechos importantes.


     Um deles pode ser sobretudo com relação ao individualismo dentro do movimento social. Individualismo nas proposições de determinados grupos, que anseiam apenas mais direitos a setor particulares do que o todo, devemos enfatizar que é obrigatória a igualdade de direitos, a despeito do gênero, credo ou raça. Não podemos fazer distinções simplesmente por divisões históricas, ou dívidas sociais construídas pelo preconceito social, devemos promover é equalidade de qualquer forma. Irrestrita e geral. Direitos iguais para todos.

      A outra é sobre a questão do ódio. Ódio sim, porque muitos não sabem dosar o próprio ímpeto e estão se deixando levar por esse desvio de caráter. A militância não é lugar para ódio pessoal, tenha consciência disso, um revolucionário profissional sabe bem como utilizar o ódio de maneira racional, mas você não é um revolucionário profissional, você é um militante. Ódio por ódio, o mundo terminará cego. Odiar individualmente uma pessoa simplesmente por questões pessoais, de gênero ou socioeconômicas é uma questão de mediocridade inclusive e utilizar-se do suporte da ideologia para deslanchar uma desmoralização pessoal contra uma pessoa em específico é mostra de falha de conduta, afinal de contas, qual o ganho para a causa em trazer transtornos individuais para uma pessoa em particular quando é o todo que importa?

    Muitas vezes novamente é a cegueira que se toma, na postura agressiva de alguns, em deslanchar golpes individuais encarniçados de mediocridade desmedida.  Rotulações, xingamentos, insultos e toda a sorte de admoestações sem fundo prático, simplesmente pelo prazer da rapinagem, alguém que age dessa forma é sem dúvida um desmoralizador do movimento. O ódio é uma arma perigosa e deve ser controlada.


    Toda a ação impõe responsabilidades, toda. O ataque pessoal, o ataque físico, a irresponsabilidade é um dos maiores crimes que ocorrem ultimamente, a própria maldita temperança de agora resulta na tentativa irresponsável de desvencilhar das consequências futuras. Lembro-me de um caso, onde uma militante agrediu gratuitamente um policial simplesmente pelo prazer de desmoralizá-lo em frente aos seus companheiros, após insultá-lo, cuspir em seu rosto e admolestá-lo de inúmeras formas diferentes, durante um protesto em 2013, conta a Copa, ela passou a ser ameaçada fisicamente pelos companheiros de farda do policial. Com o risco de ser morta, a militante desapareceu, se escondendo inclusive dos colegas, sem ter norte de como sobreviver em seus dias. Quando ouvi essa história de um colega automaticamente falei: Irresponsabilidade. 

     Por que irresponsabilidade? Pois não mediu a situação-problema com cautela. O oficial estava ali a serviço, ele é um personagem do aparato repressivo do Estado (nossa, usei um conceito empoeirado do Louis Althusser), que está ali cobrindo um encargo profissional de conter a multidão, à contragosto, vide de passagem, com excesso de adrenalina no sangue e uma arma no coldre. O policial está sob tensão, vive sob tensão, e tem posse de arma. Agora nesses termos, acha sensato atacá-lo de frente dessa forma? Pior, humilhá-lo inclusive? Na frente da imprensa? Uma pessoa com porte de arma, logicamente não. 

     Ele está exercendo um encargo profissional, e segue estatutos da corporação, mas não sejamos levianos, essa ideia de soldado-cidadão nunca deu certo em nenhum lugar do mundo, "à noite, todos somos lobos na escuridão das sombras". É irresponsável agir dessa forma sem esperar consequências. Até eu escrevendo isso eu sofro uma série de riscos, imagina quem se propõe a agir desmedidamente?

    Nisso, tenha consciência de duas coisas: A militância não é um passeio no parque, envolve riscos e uma série de frustrações e perigos. Tem uma questão de autossacríficio que às vezes é bastante inconveniente. Não seja infantil em se envolver numa questão séria sem tem plena consciência de tudo o que está envolvido, não seja cego, em outras palavras, ou usando o próprio Lenin, num conceito escrito em "Como iludir o povo", não seja um "idiota útil".

     A outra, saiba o limite entre a mediação e o enfrentamento. E digo, isso porque é uma coisa que eu levei para a vida, existem questões que não são resolvidas apenas com a baioneta, mas às vezes com a conversa;  Sobretudo no que concerne ao mundo latino, onde sempre teve um histórico sangrento. A mediação, por vezes é muito mais desejosa.

     Mediar não é necessariamente peleguismo, às vezes é jogo de cintura, nisso eu discordo até do próprio Lenin na crítica a Karl Kautsky, mesmo os social-democratas alemães terem sido taxados de colaboracionistas e traidores da classe trabalhadora, não nos esqueçamos que a social-democracia foi vitoriosa em muitos pontos da classe laboral sobretudo na sua análise acertada pela mediação em muitas questões sinceramente espinhosas, sem tanta necessidade de derramamento de sangue como foi o caso do marxismo-leninismo. Pragmatismo de vez em quando é muito apetitoso.

     Vivemos em tempos de autoritarismo disfarçado, de mudanças sociais cada vez mais aceleradas e de questionamentos diretos à sociedade atual. As ideologias do passado vêm sendo repensadas e sabemos que entre a cegueira e a mediunidade o caminho ainda é longo, me preocupa ter desconhecimento do que será o futuro, mesmo conhecendo os erros do presente. A inteligência e a perspicácia podem salvar o pensamento de esquerda hoje se ele não se render a particularidades e praticar uma postura inteligente de compreender as demandas da sociedade atual. A tudo isso, sejamos sinceros, o mundo é progressista e a recepção do horizonte de expectativas sempre se altera e tudo que eu escrevi pode estar obsoleto logo que eu publicar. Paciência, esse é o admirável mundo novo a ser descoberto.

     

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