quarta-feira, 14 de junho de 2017

A sistematização da Shoah

            Uma série de autores e acadêmicos tentam discutir o aspecto da Shoah em sua organização com o caráter funcionalista e intencional.  Um desses trabalhos que são importantes de salientar é o de Mark Roseman, Os Nazistas e a Solução final. A conspiração de Wannsee: do assassinato em massa ao genocídio, o qual apresenta aspectos relevantes para o estudo sobre o nazismo, situado no meio termo entre o intencionalismo e funcionalismo; Roseman, em seu capítulo 3,  apresenta que os nazistas e sobretudo Hitler não davam sinais de que tinham algo planejado com relação aos judeus antes de 1941, bem como não tinham elaborado nada parecido com o que viria a ser caracterizado como Holocausto (Shoá).
            Embora tenha havido as conversas sobre o que fazer com os judeus a partir do Protocolo de Wannseen, desde deportá-los e exterminá-los da face da Europa, Hitler, para o autor escondeu muito bem suas intenções com relação aos judeus. Embora muito tenha se escrito sobre Hitler de testemunhas oculares, não se sabe quando ele realmente cogitou a ideia do extermínio sistemático das populações judaicas.
            As declarações de Hitler são ambíguas, mas muitos historiadores consideram que o discurso de janeiro de 1939 como um marco para as pretensões dos nazistas de exterminarem os judeus, mas isso é questionado pelo corpo do texto, que tem a intenção de mostrar que os nazistas não tinham um plano definido de exterminar os judeus de início, mas que havia várias nuâncias às quais variavam entre a deportação dos judeus para áreas longínquas e inóspitas até certa recusa de se fuzilar judeus alemães.
            A expulsão dos judeus foi algo cogitado pelas altas lideranças nazistas até meados de 1941, quando se cogitou ou por uma expulsão dos judeus para Madagascar ou para o interior da Sibéria. Primeiramente se trabalhou com a ideia de concentrar a população judaica ao redor dos pântanos de Pripet (que hoje constituem uma parcela inóspita não só por seu aspecto pantanoso, mas pelo próprio desastre de Chernobyl), mas a concentração de judeus na região deixou os governantes locais reticentes; Cogitou-se a formação de um gueto em Łodż, entretanto, não tardou muito para que o local ficasse superpopuloso. Os governantes dos territórios conquistados a Leste com o passar do tempo se mostraram cada vez menos dispostos a aceitar as transferências populacionais para esses territórios, de modo que Himmler numa certa altura teve que autorizar a morte de 100 000 judeus para que um governante aceitasse mais transferências para a região.
            É de se considerar que no corpo do texto se tenta apresentar que a eminência da guerra com a União Soviética não tenha só levado a luta contra o bolchevismo, a busca por terras férteis e petróleo, o autor não desconsidera isso, mas ele observa que em torno de 1941 havia o desejo de se solucionar o problema de superpopulação na  fronteira oriental deportando os judeus da Europa para a Sibéria (talvez tenham se inspirado na ideia de Stálin de criar uma “Região Autônoma Judaica no Birobijan”), nesse meio tempo se considerava que no meio das deportações muitos judeus morressem.
            O próprio Heydrich solicitava que os judeus tchecos que fossem deportados para a Lituânia e os Países Bálticos em geral fossem do grupo dos “imprestáveis”, os doentes e inválidos, de modo que esses morreriam mais depressa, e calculava que no meio do transporte haveria alguns judeus que morreriam antes do embarque.
            De fato, alguns governantes gerais chegaram a declarar que não se importavam se deportassem os judeus para Madagascar ou para a Sibéria contanto que eles deixassem o solo do “Reich”. Entretanto os eventos relacionados ao ano de 1941, ano-chave da Grande Guerra Patriótica, como os historiadores soviéticos gostavam de rotular, frustraram os planos de uma deportação em massa de judeus para a Sibéria.
            Para Roseman, a deportação dos alemães do Volga por Stálin teria enfurecido Hitler e de maneira punitiva ele tenha cogitado tomar medidas mais drásticas com relação aos prisioneiros de guerra soviéticos e os judeus, mas deve-se lembrar que as deportações promovidas por Stálin, para estudiosos de União Soviética, representaram um caráter preventivo para que não houvesse qualquer instabilidade na região pró-nazista; Em todo caso, Roseman pontua que em meados de 1941, Hitler começa a cogitar uma eliminação física dos judeus.
            Embora tenha sido da Alta Cúpula do Partido que Eichmann e Hess tenham ouvido que o campo de Auchwitz seria usado como campo de extermínio. O processo de eliminação dos judeus não partiu das lideranças, mas dos escalões mais baixos do Wermarcht e da SS. Nisso se pode concluir que alguns membros dos baixos escalões viam como possibilidade de ascensão o extermínio de judeus no front. Nesse caso figura-se o exemplo do comandante na Sérvia que postulou uma lei cesariana que para cada um oficial nazista morto, cem judeus seriam mortos.
            Nisso, embora Roseman diga que o processo tenha antevido o próprio Hitler, este tinha plena ciência do que vinha acontecendo nos escalões mais baixos do Exército mas não tinha feito nada para impedir. O problema desse tipo de análise é que ela pode levar não só a conclusão (que acredita-se ser do autor) de que Hitler foi complacente com os fuzilamentos sumários, mas que Hitler poderia ter pensado que uma intervenção nos escalões do Exército poderia gerar uma insubordinação não desejável no esforço de guerra.
            É de se pontuar, que não se esquece do papel de Hitler na construção do Holocausto, mas se coloca também na equação o papel das estruturas formadas do regime.
            Quanto aos fuzilamentos sumários, eles figuraram tão recorrentes nos meses iniciais da guerra, sobretudo na tomada da parte ocidental da Ucrânia e Bielorrússia, mas Himmler passou a cogitar o uso de câmaras de gás, como meio de reduzir os custos da matança. As primeiras câmaras foram usadas na Ucrânia, em localidades como Galich e eram móveis, utilizando o escapamento de veículos do front; Posteriormente o processo de matança se tornou bastante sistematizado.
            Embora Hitler não tenha expressado inicialmente em seus discursos de maneira enfática a eliminação sistemática dos judeus anteriormente, ele abraçou o movimento que se fazia em torno disso. De modo que se demonstra que o processo de matança começou pela própria estrutura do regime, mas foi abraçada por Hitler e não teria ganhado tamanha projeção se não fosse pelo próprio “Führer”.
            O esforço do texto em mostrar a Solução Final como algo não planejado desde o início, mas como algo que foi levado em decorrência das situações e das estruturas do regime e posteriormente abraçado pelo aparato e pela Alta Cúpula do Partido Nazista ajuda a explicar o modo como se desenvolveu a ideia relacionada ao extermínio dos judeus, mas também traça um perímetro perigoso em reduzir a parcela de culpa de indivíduos como Hitler, Himmler ou Heydrich.
            Não parece ser tal pretensão do autor, ele destaca que Himmler ou Heydrich estavam intimamente envolvidos com o processo e embora pouco esteja documentado sobre o papel de Hitler nesse processo, ele existia pelo menos no nível de ciência do que estava acontecendo. Entretanto questiona-se do fato que o que os nazistas fizeram foi “ a disseminação e a modificação do experimento soviético” que ocorreram de maneira mais improvisada e fragmentada, de fato, embora tenha havido a inspiração das deportações ocorridas na União Soviética, os nazistas criaram algo novo (e nem por isso deixaria de ser nefasto) conforme as situações que se apresentavam, a sistematização categórica da morte, isso nem na URSS existia.
            É conveniente salientar que retirando esse aspecto um tanto complicado na estrutura do texto a pretensão de mostrar a Solução Final como um processo construído a partir dos acontecimentos a partir de 1941 é válida e indica que o regime nacional-socialista não possuía total controle sobre a sua estrutura ideológica e organizacional, mas que ao antever o processo que se iniciava com os fuzilamentos compulsórios na Sérvia e na ocupação da União Soviética, o regime demonstrou um silêncio;  quando os eventos se tornaram cada vez mais generalizados e a guerra se tornou cada vez mais complexa, a Alta Cúpula do Partido abraçou a ideia de se eliminar de maneira categórica os judeus, inicialmente com o fuzilamento, e o afogamento nos pântanos de Pripet, depois o uso das câmaras de gás.
            Himmler e Heydrich se tornaram expoentes e apoiadores categóricos da Solução Final,  Goebbels  e Hitler revestiram os seus discursos enfatizando que “a limpeza racial da Europa” estaria sendo feita com a liquidação dos judeus;

           Por esses aspectos, e  outros relacionados, o texto atinge sua pretensão de mostrar o processo de matança como construído e apropriado pelo regime, que teve inspiração no que vinha acontecendo na União Soviética, mas tomou um caráter particularmente próprio. E mostra de maneira categórica que os nazistas não tinham um plano definido do que fazer com os judeus inicialmente.

          De toda forma, os batalhões policiais, conforme o trabalho de Goldhagen, se tornaram agentes do genocídio durante a invasão da União Soviética em 1941, iniciando operações (inicialmente de improviso, depois planejadas) contra as populações judaicas do interior da Bielorrússia e da Ucrânia.           Dentre essas operações, os perpetradores (termo utilizado Robert Wistrich para designar os membros do Batalhão 101, os regimentos SS e eventuais auxiliares do extermínio judaico dentro da Wermarcht) selecionavam as famílias a serem deportadas para os campos de concentração na Polônia, matavam aqueles que não poderiam se locomover, como velhos e crianças (inclusive  bebês) nas casas, e quando ultrapassavam a cota ou muitas vezes para que não houvessem resistências, ordenavam que as famílias judias fossem ao bosque mais próximo do vilarejo.
          Ali, de forma sistemática, ordenavam que os judeus cavassem valas (às vezes com as próprias mãos), uma operação que levava a tarde inteira, e depois que o serviço era completo, ordenavam que os pais ficassem nus na frente de seus filhos (o que é um tabu e uma humilhação até hoje para a comunidade judaica) e depois atiravam contra eles na nuca. Muitas vezes, os perpetradores erravam e os feridos acabavam se misturando aos mortos que caíam um em cima dos outros até as valas estarem completamente cheias.
           Nisso, os alemães, embriagados, continuavam o seu festival de horrores até a noite, quando finalmente deixavam  os corpos ao relento e desapareciam com os seus companheiros para saquear outro vilarejo da mesma forma. A brutalidade com o que os alemães lidavam  com os judeus surpreendia até mesmo os superiores, alguns perpetradores voltavam à Alemanha com stress pós-traumático e outros acabavam tendo uma série de transtornos mentais, foi então que a cúpula do Partido Nazista começou a pensar em outras opções para o extermínio.
          Uma delas foi a utilização dos hiwis, simpatizantes locais, que passaram a fazer o trabalho sujo. O antissemitismo na Polônia e na Ucrânia sempre foi muito forte, e os alemães não tiveram muita dificuldade em conseguir mão-de-obra para os seus projetos malignos, esses embriagados, começaram a dar problemas e acabavam muitas vezes vazando as informações do extermínio dos judeus para as populações locais.
          As câmaras de gás, segundo Wistrich, foram usadas pelo Batalhão 101, como uma forma impedir o contato entre o assassino e sua vítima e assim, além de sistematizar o processo (e torná-lo mais rápido), era um meio de desumanizar ainda mais o extermínio. As primeiras câmaras de gás foram utilizadas em caminhões-baú, do próprio Wermarcht no front da Rússia. Os alemães utilizavam o monóxido de carbono gerado pelo motor dos caminhões como forma de exterminar os judeus sem precisarem disparar um rifle à queima-roupa.
           Os resultados para os alemães foram satisfatórios, e quando Himmler autoriza a implantação disso nos campos de concentração, o resultado foi a criação de fábricas da morte por todo o território ocupado pelos alemães. O Holocausto (Shoah) seria sem dúvida um dos mais cruéis genocídios que a humanidade poderia ter feito em toda a sua história, a barbárie desses atos passaram a ser fruto de mera estatística, com cotas sendo seguidas minunciosamente por burocratas, como Eichmann, que quando foram presos, não sentiam remorso nem culpa. "Eles apenas seguiam ordens".
          Eis uma coisa que sempre estará em pauta, qual a verdadeira parcela de culpa do cidadão alemão da época no Holocausto. Hannah Arendt diria que a banalização do mal foi a verdadeira produtora do Holocausto, que Eichmann e outros assassinos em massa eram produtos de um regime impessoal que naturalizava o genocídio com a roupa de sua ideologia e de sua própria burocracia, mas a verdade é que não tem como dizer que o cidadão alemão que morava do lado desses campos não tinha conhecimento do que  acontecia ali.
           Não que vazassem informações, ou deixassem de vazar, o fato é que esses campos de extermínio deixavam rastros muito evidentes para qualquer cidadão racional. Seja a cortina de fumaça negra dos fornos onde os corpos eram incinerados, seja o fato de que nenhum prisioneiro sequer voltou para dar notícia; A máquina de destruição alemã foi uma das mais eficientes da história, produziam cadáveres na mesma medida que produziriam automóveis depois da guerra ou remédios. Uma linha industrial sobre a morte.
            Na verdade, toda essa sistematização é a aplicação do modelo fordista, com a linha de produção, de cotas e rendimentos de quantas pessoas iriam ser mortas e como a máquina de extermínio iria se sustentar com o trabalho forçado dos sobreviventes e com os pertences pessoais dos mortos.
           A barbárie também se esconde na tecnologia e um aperfeiçoamento do sistema produtivo, como o fordismo, passa a ser utilizado como meio e força-motriz para o extermínio de pessoas. A Shoah é uma marca de todo um sistema desumano criado pela ganância e a intolerância, pelo preconceito e unicamente, pelo o ódio. Um sistema que alimentou uma guerra e sim, produziu muitas riquezas para os assassinos. Caim não foi banido apenas por ter matado o seu irmão, ele foi banido por ter se fingido de inocente.
         Culpa é uma coisa que os perpetradores nunca realmente sentiram, e agora, 72 anos depois do término da Segunda Guerra, nada além de seus ossos restaram e a amarga lembrança que seu retorno sempre pode ser presente quando a extrema-direita ressuscita o seu discurso de ódio contra os imigrantes e transforma o convívio democrático em novos cerceamentos da liberdade, em nome da "segurança",
          O Holocausto não pode ser esquecido, da mesma forma que sempre seremos obrigados a fazer uma reflexão do que o totalitarismo pode gerar em cidadãos comuns por um conjunto de mentiras reproduzidas ad nauseam e qual a verdadeira parcela de culpa que esses indivíduos tinham individualmente nesses crimes. Ali nem a moral cristã, nem a ética, ou a filosofia lhe isentaram o papel de assassinos, afinal, toda a sua brutalidade estava amparada por um conjunto de leis.

            Thomas Hobbes tem razão quando somos mais atentos, verdadeiramente "O homem é  o lobo do próprio homem", mesmo que você não reconheça, mas há um lado brutal em todo cidadão comum quando se aceita a tortura como meio legítimo de coesão social e manutenção da lei. Quando se negligencia uma coisa tão grave como a fome, se institui querendo ou não uma desumanização de um indivíduo por sua condição social e diretamente cria-se o papel de carrasco com os mais vulneráveis. Quando não se reconhece direitos aos LGBTs ou mesmo aos imigrantes, abre-se o precedente para que violem os seus direitos e os exterminem indiscriminadamente como animais, nas ruas,  nas escolas, nos hospitais. Já que não têm espaço, já  que não podem ser tratados  como iguais, banaliza-se as suas mortes.

          Querendo ou não, o nazismo ocorreu sobre o julgo de um expansionismo alemão, de uma sociedade alemã que anteriormente a isso era uma sociedade democrática. Mas quando negamos às minorias o direito de serem ouvidas e de fazerem parte de nossa própria sociedade, somos tão perversos quanto os nazistas.

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