sábado, 17 de janeiro de 2015

Batuque

          A agulha da vitrola tocava solitária num canto da sala enquanto o vento entrava pela janela. Chovia;  As pequenas gotículas de água que batiam na telha produziam um ruído que parecia ser um arranhado do vinil. A água começou a entrar no vestíbulo à medida que o vento se tornava cada vez mais impaciente por não ter sido convidado.

        O piso de madeira estava todo molhado e os quadros na parede eram volta e meia iluminados pelo trovão, era assustador ver que o relógio de pêndulo continuava a girar as horas a despeito do clima fantasmagórico que se abria no velho casarão. A casa de cômodos finos e refinados era uma preciosidade, no alto de um morro bem desenhado pela chuva e pela ação da natureza tinha uma arquitetura meio alemã-meio suíça que seduzia a todos pelo o olhar. Era a casa de muitos sonhos e vários pesadelos.

      A escada de madeira tinha apenas um degrau para cada pé, e isso era meio inusitado, mas era logo esquecido por qualquer visitante ao vislumbrar o belo jardim recheado de tulipas, rosas e alguns vasos de violeta. À noite ficava cada vez mais bonito visitar aquele lote quando se iluminavam as flores com aqueles vagalumes elétricos desenhados a muito tempo pelo arquiteto. A vitrola continua tocando o batuque, solitária, num canto da sala.

       O relógio badalava as horas, 11 e meia da noite, os donos não estavam em casa. Ninguém saberia quando iam voltar, mas o mais estranho era que a despeito de a mobília estar coberta de panos e poeira; a vitrola continuava a tocar a sinfonia. Um esganido de um roedor, bem fraco, mas não menos apavorador surgiu na lareira, coberta de fuligem e cinzas. O chapéu panamá depositado no prego junto à porta se desprendeu com a ação do vento e num momento nostálgico voou para cima do piano, onde descansa uma partitura envelhecida pelo tempo; O piano começou a tocar outro batuque.

       De repente a casa virou uma grande sinfonia, a água das telhas tocava ao fundo enquanto o piano acompanhava o doce som do vinil sendo arranhado pela agulha da vitrola, os trovões tão triunfantes serviam de estampidos de percussão e a euforia dos livros adormecidos criou vida. A canção sem melodia tocava sem nenhuma hesitação com a ausência dos donos naquela noite chuvosa de sábado. E a música beijou sob as cortinas o vento forasteiro que adentrava na casa.

      O casaco do dono da casa agora balançava, embora fosse impermeável não impediu que o chão se empapasse de água pela a abertura escancarada da janela. No alto da escada uma vela pendia no quarto que fracamente iluminado escondia a modéstia do passado; Uma cama de ferro com um colchão de penas talhava a aparência espartana de um cômodo sem rádio ou televisão.  Não havia computadores ou internet e o telefone ainda era de fio, os donos eram humildes, mas se davam a um luxo de terem banho quente ao menos;

      A sinfonia dos galanteios da chuva continuava para a alegria de um desavisado, o piano passou a tomar conotações mais caóticas em suas teclas e quando por fim parou de tocar, um rato saiu de dentro de sua armadura, as gotas de chuva continuava a cair sobre o telhado de barro, mas mais fracas. Apenas a vitrola continuava a tocar, solitária, num canto da sala enquanto o vento adentrava pela janela sem ser convidado.

    Uma sinfonia tão leve e tão sublime era a coisa mais bela a se ouvir naquela avançada noite de sábado, quando a caneta tinteiro com a ponta descoberta sobre a escrivaninha apontava para um emaranhado de papéis, projetos esquecidos e já gastos pelo tempo. Sem se dar conta, numa certa altura, a vitrola deixou de tocar sem qualquer cerimônia deixando a noite cada vez mais fria e ignóbil. A casa ficou sozinha de novo e essa ausência se tornou tenebrosa enquanto os relâmpagos continuavam a cair, agora distantes do  casarão na Rua do Encanto.

     As cortinas pararam de se mover e a sinfonia parou de tocar, tudo o que ficou foi o silêncio da ausência. Um retrato triste feito em nanquim sobre o papel amarelado pelo tempo pendia tristemente no chão, ainda ensopado pela água. Esse soberbo gênio de formas atléticas, de grave perfil, que mantém abertas nas amarras dos braços as suas asas, rudemente empunhadas como dois escudos, simboliza nobremente a grande do pequeno grande homem simples, ágil e risonho, que era o dono da casa. Um presente de um amigo distante que o tempo não custou a separá-los.
      

      Na parede em um dos quadros estava o retrato mais filedigno do dono daquele casarão, vestido com um casaco e com uma calça muito curta sempre arregaçada, coberto com chapéu mole cujos bordos estão em contrapartida sempre rebatidos, ele nada tem de monumental. O que o distingue é o gosto pela simplificação, das formas geométricas, e tudo no seu aspecto denota este caráter. Tem paixão pelos instrumentos de precisão. 

      Sobre a sua mesa de trabalho estão instaladas pequenas máquinas de precisão, verdadeiras jóias da mecânica, que não lhe servem para nada e estão lá somente para o prazer de tê-las como bibelôs. Ali se vê, ao lado de um barômetro e de um microscópio do último modelo, um cronômetro de marinha, na sua caixa de mogno. Até mesmo no terraço de sua casa ergue-se um esplêndido telescópio, com o qual ele se dá à fantasia de inspecionar o céu. Tem horror a toda complicação, a toda a cerimônia, a todo fausto. Assim, que rude e deliciosa provação para a sua modéstia, esta inauguração! Esse homem era Santos Dumont.

      Ali estavam o seu piano, o seu barômetro e a sua amada vitrola que não cansava de ouvir nas noite solitárias no alto do altiplano celeste de Petrópolis. A música que ele mais gostava era difícil dizer, mas nesse dia tocava uma obra lindamente arranjada de Alberto Nepomuceno, o  magnífico compositor cearense, Batuque da série a Brasileira, com a assinatura do próprio Nepomuceno no verso. Aquela casa carregada de lembranças não escondia a insatisfação de não ter o retorno de seu ilustre dono, abandonado pelo esquecimento na morada de sua morte amargurada.


       Memórias de anos que já se perderam na memória do esquecimento.


                                                        Batuque, de Alberto Nepomuceno


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