quarta-feira, 28 de maio de 2014

Um gato

            Silenciosamente discreto de olhos puxados e pose aristotélica o pequeno e exuberante felino negro demonstrava um olhar de erudito frente ao movimento incessante do final de noite. Os corredores apilhados de gente eram foco de sua atenção.

            Esses olhos martelavam contra os modos ignóbeis da pequena humanidade cada vez mais hipócrita e com um tom claro de censura diziam: “Esses humanos...” Elevou o pescoço e com orelhas ligeiramente levantadas o gatinho procrastinou.


            No vão de concreto escuro do jardim delicadamente desenhado as gramíneas e margaridas circunscreviam as mudas de pequenos pinheiros lusitanos deixando ao gato uma pose de estátua marcial no meio do silêncio da noite gelada. As trepadeiras e as árvores de tronco retorcido arrastavam suas folhas contrariamente maliciosas à forma da pena do verso solitário.

            Acocorado no chão, o felino se toma numa mísera bola de pelos que se comprimia no frio com o verso de uma imagem cada vez mais imprecisa do que seria um gato solitário, esnobe e as vezes arrogante. Volta e meia ele olhava para mim com um olhar afetuoso de menino perdido e estranhamente eu me identifiquei com aquele pequenino ser de pelo escuro.

            Novamente em pé, ele fez questão de me ignorar com maus olhos e iniciou comigo um pequeno diálogo monossilábico de censura. Seus olhos fracos se afastavam dos meus e contra nós mandou um olhar arrogante e negligente. Sua paciência com os humanos, insuperavelmente humanos tinha se esgotado.


            Seu ar senhorial, de lorde inglês de fraque e whisky na mão tinha cativado a minha atenção de tal maneira que enxerguei eu próprio numa versão mais galante e despreocupada. Aquele gato era um arrebatador de corações negligente, as gatas teciam semicírculos em torno de seu perímetro, mas ignorando a tudo e a todos, o felino me olhava de maneira cada vez mais visceral. Ele estava me analisando, vendo como nós dois nos parecíamos.


            Deslocado o gatinho olhou sem nenhuma pinta de ciúmes para as felinas que desapareciam nas sombras da noite, convencido de que não conseguira nada senão uma troca de olhares e estava calmo com isso, estranhamente calmo.


            Preguiçoso ele se espreguiçou diante dos meus olhos e começou a se afastar de onde estava, tomando cuidado para parecer vaidoso até que desapareceu sem maiores despedidas.




            Lineu era seu nome, o pequeno gato Lineu, de pelo escuro e olhos cada vez mais rasgados, um pequeno felino tão deslocado no mundo como eu.

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