No caminho para o Parlamento, o
jovem deputado tomou o cocheiro através da velha curvatura isabelina da capital
imperial com o passo do progresso vitoriano de uma sociedade que se
modernizava, o telégrafo se expandia pelo interior e chegava até por baixo d’água
no cabo submarinho. As locomotivas corriam o país com seus trilhos de ferro
cada vez mais rigorosos, e as fábricas corrompiam o ar da cidade com os gases
pesados de suas chaminés.
O jovem Theodore Cardigan era um
típico gentlemen inglês, vinha de uma tradição de lordes militares que passava
por gerações, seu tio, não tinha sido ninguém menos que o Duque de Cardigan,
que lutara contra os russos na Crimeia há vinte anos, quando os interesses do
Império estavam sendo ameaçados pelos cossacos czaristas.
Seu pai, Phileas Cardigan, era um
traficante de ópio e ganhara vultuosas somas vendendo essa droga para os
viciados chineses em Hong Kong, bem como no Cantão. Com essa fortuna, investiu
em títulos na Bolsa de Londres e fez fortuna injetando dinheiro nas ferrovias
na América. Os títulos da Pacific Oceanic até hoje rendiam suntuosas somas à
família Cardigan.
Quando a sua mãe, Jeannette de
Sourbone, era uma “legitime madam de France”, no termo mais pejorativo do
termo, era bastante sensual e lasciva, conquistava a todos com seu jeito
cortesão e seu olhar debochado aos ingleses, e volta e meia traía o marido com
jovens oficiais da guarda do Palácio de Buckingham. Numa dessas, Phileas
encontrou sua esposa aos braços do prefeito de Londres e como produto do
escândalo os tabloides inundaram a casa com verbetes sujos e ruidosos.
Por pressão do marido ou pela
própria vergonha social, Jeannette se suicidou na escrivaninha do marido quando
Theodore tinha dois anos. Desse modo, Theodore passou a ser o único herdeiro da
fortuna da família, e acabou sendo criado pelo seu mordomo, Joffrey Harryford,
que acabou sendo seu tutor com a morte de seu pai de sífilis no colo de uma
prostituta chinesa no bairro velho de Londres.
A despeito da história da família,
Cardigan se tornou um rapaz exemplar, criado na ótica dos costumes da corte da
Rainha Vitória, e sua lapela associada com sua origem de gentleman o fizeram
cursar o curso de Direito em Cambridge e História pela Universidade de Oxford.
Um homem fino, com costumes finos, mas excentricidades inglesas.
Isso porque a despeito da fortuna da
família, Theodore gostava de viajar. Seja para as areias do deserto do Egito,
cruzando o Canal de Suez, ou mesmo andando de camelo pelas três pirâmides de
Gizé, seja tomando um bom vinho sob a égide do Coliseu em Roma, ou namorando
algumas concubinas em Napóles.
Bon-vivant e aventureiro, não tirava
seu amor pela História, na verdade, ele levava até as últimas consequências.
Contraiu malária quando correu pelas selvas da Amazônia procurando o “Cetro da
tribo Nukuini”, foi alvejado pelas tribos Zulus na região do Zimbábue quando
caçava um leão para sua coleção e acabou preso na Índia por ter profanado um
templo na procura por uma pedra de Sankhara.
Os anos de juventude o fizeram ser
um arqueólogo e um trapaceiros como outro qualquer. Especulara muito na Bolsa
de Nova Iorque, roubando inclusive terras de posseiros americanos no Meio-Oeste
para produzir algodão. Dera um golpe nas minas do Chile e tinha um conluio
desonesto com os Rothchild para extorquir dinheiro junto aos governos brasileiro
e argentino.
Essa folha de serviço nada impecável
o consagraram como membro da Câmara dos Lordes e querido pelo partido
Conservador.
James Sulivan era um típico operário
de WestHam na parte leste da capital inglesa, sob o calor fabril das
siderurgias sob o Tamisa, o jovem rapaz de vinte e cinco anos conservava-se
sujo de graxa com o macacão de brim rasgado inúmeras vezes pelas traças e
piolhos. O serviço de torneiro mecânico vinha sendo cada vez mais difícil com
um salário de 45 xelins por semana e uma jornada de doze horas por dia.
Sulivan era um típico inglês com
seus dentes amarelados e o rosto cavalar, regia-se pelo ponteiro do seu relógio
de bolso (única herança que recebeu de seu pai alcoólatra), e isso se aplicava
até na hora de desposar sua esposa (e isso ela muito reclamava). Tinha cinco
filhos com Amanda Sulivan, dos quais, o pequeno Harry estava com coqueluche e
não dava sinais de melhora.
Era véspera de Natal quando o
pequeno Harry de dois anos e meio morreu nos braços da mãe. No dia seguinte,
James teria que trabalhar. Não se lembra de ter chorado naquele dia frio e
azedo em que a neve entrava na pequena casa de madeira no subúrbio da capital.
Mas logo, logo foi demitido por um corte de gastos.
Sulivan passou a ser apenas mais um,
um no exército de reserva e passou a mendigar com os filhos; Conseguiu um
emprego de guarda-volumes numa loja, mas logo foi demitido, até ser contratado
por uma fábrica de revólveres em Millwall. Nessa altura, a esposa de Sulivan e
a filha morreram numa epidemia de cólera que abateu a cidade, e ele tomou
contato com os escritos anarquistas de Proudhon e Bakunin.
Naquele dia corriam os boatos de um
novo discurso na Câmara dos Lordes sobre a situação da fome da Índia e os
conservadores na figura de sir Cardigan protestaram ferozmente contra qualquer
iniciativa de ajuda à “joia da Coroa”. Sulivan estava disposto a mudar a
situação.
Montgomery MacCartney era um escocês
de mão cheia, das Highlands, vivia de uma maneira muito confortável cuidando
apenas de suas ovelhas (e não só cuidando delas, mas se envolvendo de maneira
muito carinhosa, para não usar outros termos infames), e bebendo seu scotch
todos os dias.
Alcoólatra inveterado, veio com a
família para a capital quando a situação nas Highlands era cada vez mais
difícil. Como, disse, ele era alcoólatra e não muitas vezes batia na mulher e
nos três filhos, William (em homenagem a William Wallace), Adam (em homenagem a
Adam Smith) e James (em homenagem a James Watt). Cada vez mais consumido pelo álcool
acabou entrando na marinha por intermédio de seus amigos de bar, vindo a lutar
na Crimeia e também nas intervenções na Ásia.
Condecorado acabou voltando à Inglaterra como um herói renomado e
sem muitos problemas acabou entrando na Scotland Yard, vindo a se notabilizar
por sua brutalidade com os cidadãos do gueto judaico (incluindo acusações de
estupros a algumas mulheres judias). Odiado por seus companheiros, MacCartney
acabou assumindo o posto de guarda na entrada do Parlamento, um posto que ele
realmente odiava.
Cardigan chegou à entrada do Palácio de Westminster às 10h 50 da
manhã sendo recepcionado pelo colega do Partido Conservador, Charles Robinson e
subiu as escadarias na porta do prédio sob o olhar paciente dos jornalistas e
dos mendigos. Um engraxate se ofereceu para engraxar seu sapato, que ele não
teve o trabalho sequer de rejeitar ao esboçar um olhar ameaçador.
— Esse lixo nas portas do Parlamento é o que estraga a glória do
Império! — Concluiu ao colega depois de entregar a casaca e a cartola na
chapelaria.
— Que bom que temos você para salvar a glória da Rainha. Cada vez
mais que vejo esses lixos mendigando alguns xelins e essas prostitutas à porta
do palácio da Rainha eu acredito que Malthus estava certo e que devíamos controlar o nascimento dessa
gente!
— Meu caro, essa gente ainda irá nos produzir dividendos! Lembre-se
da Índia!
— Pois é... A Índia!
E os dois entraram na sala da Câmara dos Lordes.
MacCartney pouco se importou
com a entrada de sir Theodore Cardigan
no Parlamento, de fato, até ignorou, não se importava nem um pouco com
os lordes entravam ou saíam do Parlamento. De fato, eles lhe pareciam inúteis,
em seus sapatos de couro, sobretudos pesados e cartolas altas. Parecia uma
convenção de pinguins numa cidade cada vez mais sombria e lamacenta.
MacCartney odiava Londres, ah, como ele odiava. Para ele a cidade
crescera demais, como um câncer que não tinha tratamento, e com ela, seus
crimes. E nisso ele entrava, para bater nos criminosos. Às vezes dava uma
passada no bairro judeu para humilhar os poucos rabinos que saíam à noite ou
ameaçar as jovem moças de família, mas isso lhe correspondia um mero passatempo
de antissemita.
Ele sorria cada vez que lembrava das maldades que cometia no gueto
e passava impune por um mero uniforme, corriam
os boatos de um serial killer que atacava mulheres pobres no gueto, um
tal de Jack Estripador. Pois bem, podia ser muito bem ele.
Ele riscou um fósforo e começou a dar um trago num cigarro feito de
folha de jornal velho.
Sulivan mantivera-se
incógnito na multidão de mendigos e cocheiros e pode observar atentamente os
passos de Cardigan desde sua saída do coche até a sua entrada no Parlamento, de
fato chegou até uns poucos metros do lorde, disfarçado de engraxate, mas foi
profundamente rechaçado com um olhar desaprovador do homem.
Não tivera tempo para armar a bomba na pequena caixa de engraxar,
senão teria mandado aos ares ele e Cardigan no mesmo instante, mas
pacientemente voltou ao seu lugar olhando maneira preguiçosa as poças que se
formavam nos ladrilhos quebrados da Whitehall. O céu acinzentado se deslanchou
quando a garoa fina começou a cair e a empapar sua boina de operário.
Tentando se abrigar da chuva, correu para dentro de uma marquise e
pediu um pouco de cerveja escura para aguentar o que viria a fazer.
“Caros patrícios, a situação na Índia vem tomando proporções
inimagináveis. A seca que grassa o subcontinente há dois anos produz uma legião
de famintos e leprosos que se estendem em cidades importantes, como Bombaim,
Calcutá, Déhli, Madras e outras partes do país.
Ao que indica tivemos levantes na região de Bengala e da Caxemira e
os informes do vice-rei da Índia são alarmantes, ao que indica as ferrovias vem
sendo paralisadas e as plantações de cânhamo, algodão e chá estão sendo
atacadas pelos famintos do interior.
Destacamentos do Exército e de sikhs foram enviados para a região
de Bombaim para garantir a ordem, mas a Índia é uma nação muito grande para
pensarmos em mandar fuzilar pessoas. Peço-lhes como nação cristã e civilizada
que é a nossa Grã-Bretanha, que observem com atenção a situação desses súditos da Coroa que
padecem pela fome que aos poucos ceifa a saúde do nosso Império”
Após o discurso de sir Gérald Hollister, que foi vaiado pelo setor
ultraconservador, e aplaudido de pé pela a ala mais liberal do Parlamento, sir
Theodore Cardigan tomou a palavra:
“A sua juventude ainda me surpreende, mister Hollister. Sabe falar
com eloquência de assuntos de menor importância. Caros patrícios dessa câmara
solene, discursos inflamados são coisas que o Império não padece, afinal de
contas, de palavras não se alimenta um povo. E qual povo? O povo da Inglaterra!
Dizer que são nossos súditos aquela legião de selvagens que habita
as florestas da Índia é humilhar o aspecto civilizado de nosso Império,
multidões crescentes aparecem aqui todos os dias querendo nos ceifar até os
últimos xelins, isso quando não nos encurralam em guetos escuros para cortarem
nossas gargantas à luz da madrugada.
Não à toa que proliferam nos jornais os anúncios sobre esse Jack, o
Estripador, que ataca na surdina mulheres inocentes alastrando um rastro de
ódio e terror. O erário inglês não pode ser desperdiçado com um levante de uma
dúzia de camponeses indianos toda vez que a colheita não for boa. Construímos
esse Império à base do ferro e do fogo!
Cortando de Leste a Oeste nossas ferrovias chegam às partes mais
incivilizadas e incultas da África, no Império onde o céu nunca se põe. Nós
como cavalheiros, devemos defender esse Império de ameaças externas, não nos
preocupar com incivilizados que são os indianos. Eu estive na Índia e lembro
muito bem como fui atacado por ter entrado num templo hindu! O que esperar
dessa gente que tem preconceito de si mesma?
Não devemos usar os recursos da nossa Câmara Alta, nem mesmo da
Câmara de Comércio para auxiliar a derrocada do Império. Se há fome na Índia a
responsabilidade, ou melhor, a irresponsabilidade só pode ser creditada a uma
pessoa: A figura do vice-rei da Índia, que foi irresponsável com suas contas
públicas.
Nada poderá abalar a nossa fé no Império. Deus salve a Rainha
Vitória!”
Cardigan foi aplaudido de pé pela ala conservadora do Parlamento
enquanto os liberais se mantiveram silenciosos com a multidão de aplausos e de
palavras de júbilo, certamente os jornais falariam de maneira muito positiva
sobre o discurso desse “defensor do Império”.
Aplaudido pelos seus companheiros, Cardigan saiu acompanhado de
seus corregionários de partido para a entrada do parlamento onde pegou sua
cartola e seu sobretudo com um dos funcionários da Câmara dos Lordes.
— Belo discurso, sir Cardigan.
— Obrigado, meu caro
Rutherford. É sempre bom ouvir a aclamação de meus colegas de tribuna.
E desceu as escadarias. Uma legião de jornalistas o cercava com
perguntas cada vez mais aguçadas sobre as deliberações do Parlamento sobre a
fome na Índia, mas Cardigan apenas deu um aceno e esboçou alguns sorrisos.
Enquanto se encaminhava para o coche, MacCartney tentava conter a legião de
jornalistas com o próprio corpo. Foi então que Sulivan apareceu a quatro metros
à frente do lorde e sacou uma pistola.
— Morte ao imperialismo!
Cardigan horrorizado não conseguiu esconder a surpresa no seu
rosto, mas antes que pudesse falar algo, a arma disparou. Uma, duas, três
vezes. POW!
MacCartney correu para frente de Cardigan, mas foi alvejado com uma
bala que entrou no peito e atingiu no coração, morreu em questão de um minuto,
junto com o lorde Cardigan que suspirava e golfava um pouco de sangue
discretamente no canto do lábio esquerdo. Até nisso ele era inglês!
Os outros guardas correram atrás de Sulivan, que inutilmente tentou
correr em direção à ponte, mas acabou sendo morto pelas mãos de outro guarda
armado. Às 12h45, o operário James Sulivan tinha sido morto, e cinco minutos
antes, o lorde Theodore Cardigan e o oficial Montgomery MacCartney.
Naquele dia de 11 de maio de 1896, as sessões do Parlamento não
falavam senão do ocorrido, assim como os jornais vespertinos. Lorde Robinson
esboçou um discurso emocionado na câmara dos Lordes, com as mãos ainda sujas de
sangue:
“Essas mãos nunca viram coisa tão ultrajante quanto o que aconteceu
na porta dessa grande casa. Um dos nossos membros mais ativos foi duramente
assassinado pelas mãos de um terrorista anarquista que não conhecia o
fundamento de suas ideias e pensamentos.
Penso que não só perco um amigo, mas um grande homem. E além disso
a morte de Cardigan mostra o completo desrespeito por alguns dos direitos dessa
casa e da justiça em torno da Rainha da Inglaterra e do Parlamento. Enoja-me
pensar que os inimigos do Império se comprazem nesse dado momento pela morte de
nosso grande colega nos bastiões da justiça inglesa.
Peço-lhes que adiem a sessão extraordinária de hoje e que pensem
com atenção nas palavras de nosso companheiro de tribuna a cerca da questão da Índia,
pois não conheci nenhuma pessoa mais justa e racional quanto o falecido
Theodore Cardigan”;
O choro falso de Robinson não convenceu ninguém, mas a despeito do
que tenha parecido, ele conseguiu que a votação fosse adiada, e logo em seguida
o Parlamento votou contra a ajuda às vítimas da fome na Índia que levou milhões
de indianos à morte.
Os jornais daquele dia, incluindo o Essex Diary, destacaram:
“Hoje a Monarquia não só perde um grande orador, discursante e
amante da glória de nossa querida Nação; Não só perdemos o trabalho atuante de
um bom oficial de polícia que morreu no cumprimento do seu dever, deixando
mulher e filhos. Perdemos mais do que isso, perdemos a noção de um Império
único e monolítico que morre com o assassinato de sir Theodore Cardigan.
As lembranças de uma monarquia sem inimigos internos se findaram
nas três balas que o anarquista James Sulivan destruíram por completo a
genialidade e perseverança desses dois homens que seguiam suas vidas em prol do
nosso grande Império onde o sol não se põe.
A Inglaterra se vê repleta de inimigos, e a isso devemos procurar
segurança. Armar-nos contra os inimigos que desejam nossas colônias e findar
com a harmonia que vivemos sob o mandato de nossa amada rainha Vitória.
Definitivamente a Inglaterra é o futuro da Humanidade e desse
futuro não precisamos do vírus pestilento do anarquismo canceroso que também
dilacera outras nações da Europa”
Engraçado como o fato de uma missa
de sétimo dia ter sido rezada a sir Cardigan movimentou toda a aristocracia
inglesa, mesmo ele sendo um trapaceiro, racista e mulherengo, enquanto Sulivan
foi enterrado como indigente em alguma vala comum em algum cemitério na região
de Londres. Mas essa era a vida no Império onde “o sol nunca se põe e reluz
através da coroa da rainha da Inglaterra”.
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